Wallace de Moraes[2]
“O que existe e que constitui o que se pode chamar de doutrina anarquista é um grupo de princípios gerais, conceitos fundamentais e aplicações práticas, segundo os quais foi estabelecido um consenso entre indivíduos cujo pensamento é contrário à autoridade, e que lutam, coletiva e isoladamente, contra toda disciplina e repressão, sejam elas políticas, econômicas, intelectuais ou morais. (…) Portanto, quem nega a autoridade e luta contra ela é um anarquista.” (Sébastien Faure in Enciclopédia anarquista)
Esse capítulo tem dois objetivos centrais:
1) Discutir os postulados centrais da filosofia política anarquista, apresentando suas principais críticas ao Estado e a todas as formas de exercício da autoridade. Simultaneamente, também apresentaremos suas proposições teóricas como: autogestão ou autogoverno, federalismo, comuna, horizontalidade, todas embasadas na defesa da mais ampla liberdade e igualdade, enfim, no socialismo antiautoritário, libertário, ou, simplesmente, anarquismo.
2) Desde a filosofia política anarquista e seguindo o pressuposto segundo a qual a sociedade ocidental está permeada por opressões, criamos alguns conceitos e ressignificamos outros. Assim, dessa simbiose pudemos identificar:
a) nove tipos puros de governanças sociais opressivas. Elas atuam em conjunto e simultaneamente sem um único núcleo irradiador, atentando incisivamente contra alguns determinados grupos/etnias/classes sociais. As governanças sociais são as seguintes: racial, patriarcal, sexual, capitalista, religiosa, acadêmica-científica, da estética produtiva, oficialista e xenofóbica (nacionalista, ufanista). Mostraremos, ainda, que essa última perpassa por todas as outras;
b) cinco formas de governanças institucionais: política, econômica, sociocultural, penal e jurídica. Defendemos a tese segundo a qual as governanças sociais apresentadas são irradiadas/potencializadas pelas governanças institucionais por meio da interpenetração e retroalimentação recíproca;
c) as categorias de Estadolatria; de Plutocracia, com as suas subdivisões; de ditaduras, que podem ser de dois tipos: Militar-Plutocrática-Desavergonhada e Plutocrática-Militar-Dissimulada; e, por fim, o conceito de Conciliação Masoquista de Classe, realizada por governos supostamente reformistas. As categorias supracitadas foram aqui instituídas e/ou ressignificadas.
Todos esses conceitos serão aplicados na análise das histórias políticas de Brasil e Venezuela. Portanto, essa leitura é chave para entender a obra como um todo e o nosso quadro teórico-metodológico. Por fim, mostraremos que para todo governado, oprimido, existe um governante, opressor.
A disputa conceitual é fundamental nessa empreitada. Ao longo da História, os intelectuais, amantes do Estado, das hierarquias, das desigualdades, de seus partidos políticos e justificadores das governanças sociais, criaram categorias para legitimar as instituições e apoiar seus governantes. Portanto, os conceitos instituídos, bem como a história, na forma como é relatada por eles, obstam reflexões que estimulem a luta pela liberdade/igualdade. Destarte, se almejamos contribuir para a emancipação intelectual, estimulando a luta por direitos e a crítica da ordem, potencializando o discernimento autônomo, é imprescindível um combate nesse campo contra as convicções existentes.
Vamos ao primeiro passo.
1.1 DOS PRINCÍPIOS E DAS CATEGORIAS TEÓRICAS ANARQUISTAS
Anarquia é um vocábulo formado por duas palavras gregas: an, que significa não, e arkhé, que significa autoridade. Neste sentido, anarquia expressa negação de toda e qualquer tipo de autoridade. Por extensão, no sentido político, negação de todo governo, todos os governantes, negação do Estado; no sentido econômico, negação de toda hierarquia no local de trabalho, de todo patrão, de todo chefe; no sentido social, negação de toda forma de discriminação, de todos os preconceitos.
O anarquismo também significa afirmação de alguns princípios. Seus dois principais são o da igualdade e o da liberdade. A defesa da igualdade entre os homens só pode ser plena conjuntamente com a liberdade. Por isso, os anarquistas também são conhecidos como libertários. Se existe alguma pessoa ou instituição imbuída de um poder maior que o de outras, logo, existirão uns submissos a outros e, portanto, não haverá igualdade entre as pessoas, nem liberdade para os subordinados. Normalmente, as chamadas autoridades têm mais vantagens e poder do que o restante da coletividade. Assim, os libertários não são contra as pessoas que exercem a autoridade apenas, mas, sobretudo, contra a instituição que garante a sua existência, contra o cargo que normalmente é exercido no Estado, no poder público, ocupado pelos chamados governantes e seus agentes, secretários, juízes, militares, policiais e outros.
Fora do Estado existem outras autoridades, nas fábricas ou nas empresas, os patrões ou seus representantes, denominados chefes, que impõem suas regras e vontades sobre os trabalhadores. Nos campos, os fazendeiros impõem suas normas sobre vários agricultores.
Todas essas autoridades compõem um capitalismo xenofóbico, racista e patriarcal que subordina e oprime mais os povos indígenas, negros, as mulheres, os LGBTQIA+[3], deficientes, idosos, analfabetos, estrangeiros, em busca de trabalho oriundos de países periféricos, e pobres em geral. Estas diferenças com base nas governanças/opressões, entre patrões e empregados, chefes e comandados, governantes e governados, ricos e pobres, brancos e outros povos, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais que só favorecem aos primeiros, são alvo daquilo que os anarquistas devem combater.
Diferente do marxismo que tem os escritos de Karl Marx como guia supremo, o anarquismo não tem um teórico ou guia que encarne uma autoridade científica. Alguns identificam a defesa do repartir do pão, do amor ao próximo, e a condenação de toda riqueza realizadas por Jesus Cristo como libertárias. Outros afirmam que o anarquismo surgiu a partir de P. Proudhon, no século XIX, na defesa do mutualismo e de sua crítica peremptória à propriedade privada. Outros ainda defendem que o início do anarquismo aconteceu com M. Bakunin e sua proposta de coletivismo. Não obstante, de maneira sistemática, diferentes militantes contribuíram para as linhas gerais dessa escola, como, por exemplo, P. Kropotkin, E. Malatesta, Emma Goldman e diversos outros teóricos e lutadores populares conhecidos e anônimos que deram suas vidas em nome da liberdade. Para exemplificar a questão, citemos Graeber (2013):
Os “fundadores” do anarquismo não viam a si mesmos como inventores de algo particularmente novo. Consideravam seus princípios básicos – ajuda mútua, associação voluntária, tomada de decisão igualitária – tão antigos quanto a própria humanidade. O mesmo vale para a rejeição ao Estado e a toda forma de violência estrutural, desigualdade ou dominação (anarquismo significa literalmente “sem governantes”) – mesmo a suposição de que todas essas formas estão de certo modo relacionadas e reforçam umas às outras. Nada disso era visto como uma doutrina incrivelmente nova, mas como uma tendência duradoura na história do pensamento humano, que não cabe em nenhuma teoria ideológica geral (GRAEBER, 2013).
Zumbi dos Palmares, Emiliano Zapata, Anastasia Ivanovna e Robin Hood ao lutarem contra as governanças estabelecidas, e utilizarem-se da ação direta em prol dos oprimidos, atuaram em acordo com os princípios anarquistas. A teoria anarquista, portanto, não é uma ciência acabada, ela está sempre em construção e depende profundamente do contexto na qual é aplicada, mas três questões compõem a sua marca indelével: a defesa da plena igualdade (econômica, social e política), da liberdade individual e coletiva sem restrições, e do autogoverno. Os oprimidos de todas as épocas e partes do mundo em grande medida tiveram essas bandeiras de luta. Portanto, o anarquismo não traz nada de novo, diferente ou descolado da realidade, quem faz isso são os que querem legitimar e impor o Estado como algo natural.
Destarte, o anarquismo defende a criação de uma sociedade entre iguais, sem patrões e empregados, sem discriminações, sem governantes e governados, portanto sem Estado e sem propriedade privada das terras, das empresas. Só dessa maneira será possível, defendem os anarquistas, a construção de uma sociedade fraterna, na qual todos possam trabalhar e receber de acordo com as suas necessidades, com livre associação entre as pessoas, sem qualquer tipo de opressão.
Todo o produto desta sociedade deve servir a mesma, sem a coação capitalista que obriga aos governados produzirem mercadorias para enriquecer os patrões. Desta maneira, espera-se o fim da alienação, isto é, o fruto do trabalho deve pertencer a quem produz, simultaneamente, as máquinas, computadores, enfim, os avanços científicos e tecnológicos, devem servir a todos, diminuindo a jornada de trabalho das pessoas para que possam usufruir das horas de lazer a seu bel prazer. Desejar e lutar por esses objetivos significa alguma loucura? Não seria melhor dizermos que aqueles que se opõem a isso é que são os ‘loucos’, ‘baderneiros’?
Ao mesmo tempo, os anarquistas acreditam no autogoverno ou autogestão. Se partimos da premissa segundo a qual devamos ser governados, logo entendemos que não temos capacidade de autogoverno. Com esta assertiva, está todo o fundamento da autoridade e da tutela contra a qual os anarquistas lutam. Toda forma de governo será sempre uma imposição de uns sobre outros, atentando contra a liberdade dos governados. Mesmo que o governo tenha boas intenções, ele sempre se sustentará na miragem de que os governados são incapazes de autogovernar-se e/ou necessitam de controle.
No sentido oposto, os anarquistas defendem a livre associação entre os indivíduos para gerirem o produto de seu trabalho e todas as demais questões da sociedade em comunas livres, sem patrão, Estado, ou qualquer forma de opressão. Elas devem constituir-se pela livre associação entre os indivíduos. Ou seja, as pessoas escolhem aquelas com as quais querem associar-se e criar ou manter algum tipo de produção para a sociedade. A junção de diversas comunas comporá a federação. O anarquismo defende os fundamentos do federalismo como forma de organização social. Ademais, o preceito da autodeterminação dos povos é fundamental para a teoria anarquista e viabiliza a superação do capitalismo e suas formas de opressão.
Em resumo, a teoria anarquista aponta para o autogoverno, pois crê na ampla possibilidade de as pessoas serem verdadeiramente autônomas e com liberdade, gerindo sua vida em coletividade, horizontalmente. Essas transformações devem ocorrer pelas mãos dos próprios governados, sem a necessidade de uma vanguarda revolucionária, ou de um partido que vá dirigir o processo. O principal caminho dessa transformação é por meio da ação direta, sem intermediações políticas. Em outras palavras, é fundamentalmente por meio da organização e da luta dos trabalhadores que ocorrem as mudanças. Uma teoria anarquista deve privilegiar como objeto de análise o quanto os governados modificam suas condições de vida por meio da sua diligência coletiva.
Assim, o sistema capitalista aparece como um anátema, baseado na exploração do homem pelo homem, na propriedade privada, nos autoritarismos do Estado e dos patrões, e na desigualdade, que por sua vez constitui-se como terreno fértil para todo tipo de preconceito, discriminação, enfim, de governanças/opressões sociais.
Nos sistemas capitalista, escravista, feudal, os governados foram/são obrigados pela arma, pela espada, ou pela simples coação capitalista a trabalhar produzindo riquezas para os governantes econômicos e políticos. O conceito de coação capitalista visa explicitar a necessidade/obrigação de as pessoas despossuídas dos meios de produção terem que vender sua força de trabalho a um proprietário. Isso decorre da inexistência de meios de produção e recursos disponíveis para o livre trabalho e a sobrevivência dos governados. Em resumo, a coação capitalista advém do fato de não existir terras livres e férteis para produção da própria subsistência, em função da sua apropriação realizadas por alguns e a consequente transformação delas em mercadoria.
Os libertários defendem a ação direta como meio de melhorar as condições de vida da humanidade, isto é, a auto-organização dos trabalhadores, homens e mulheres, em uma palavra, dos governados, que juntos devem lutar pela libertação total e pela construção de um mundo novo, a verdadeira emancipação social, sem intermediação alheia.
À guisa de conclusão, o pensamento anarquista pode ser sintetizado na defesa dos seguintes aspectos: propriedade comum, gestão direta dos trabalhadores, ajuda mútua, acordo, horizontalidade e solidariedade, coletivismo – associação voluntária dos indivíduos, distribuição dos produtos da sociedade de acordo com as necessidades, internacionalismo, revolução social, ação direta, greve geral, federalismo, autogoverno, emancipação social e liberdade plena para todas os oprimidos pelas múltiplas opressões sociais. Esse pensamento também pode ser lido por aquilo que se contrapõe: anticapitalismo; contra a propriedade privada, a divisão social do trabalho e o regime de salariado[4]; contra o Estado, as hierarquias, os autoritarismos e o regime oligárquico-representativo ou, simplesmente, plutocracia; contra o individualismo burguês, o nacionalismo xenófobo e toda forma de discriminação com o outro.
1.2 DAS GOVERNANÇAS INSTITUCIONAIS E SOCIAIS, DA PLUTOCRACIA E DA ESTADOLATRIA
Com base na tradição filosófica anarquista, e como forma de retroalimentá-la, propomos a utilização de cinco conceitos de governanças institucionais que funcionam em acordo com a plutocracia e a Estadolatria vigentes. Mostraremos à frente como as governanças/opressões sociais são alimentadas no interior do Leviatã, que busca subjugar a todos em seu conjunto, tratando-os simplesmente como governados.
A partir do enfoque institucional, identificamos cinco tipos de governanças: econômica, política, sociocultural, jurídica e penal. As diferenças das governanças sociais para as governanças institucionais que estabeleceremos a seguir embasam-se em dois eixos: 1) aquelas atentam, não exclusivamente, contra determinados setores da sociedade – mulheres, negros etc. – e não dependem do Estado para se concretizarem; 2) as governanças institucionais são formas declaradamente legalizadas que atingem diferentes grupos/classes/povos oprimidos ao mesmo tempo e em seu conjunto. Não obstante, é mister destacar que as governanças sociais e institucionais e suas atinentes opressões interpenetram-se e retroalimentam-se. Assim sendo, para o pensamento anarquista, não é possível pensar na supressão de apenas uma governança, mas trabalhar para a liquidação de todas elas em seu conjunto.
A soma de todos os grupos oprimidos pelas governanças institucionais e sociais chamaremos por governados, embora existam também em diferentes formas, como veremos.
Apresentemos nossos conceitos.
1.2.1 DO CONCEITO DE ESTADOLATRIA
O Estado é a expressão de todos os sacrifícios individuais. Por existir de forma tão abstrata e ao mesmo tempo violenta, o Estado continua cada vez mais a impedir a liberdade individual em nome da mentira chamada ‘bem comum’, que obviamente representa os exclusivos interesses da classe dominante. Desta forma, o Estado se mostra como uma negação inevitável, uma aniquilação de toda a liberdade, de todos os interesses individuais e gerais” (Bakunin, 2011).
Já sabemos que a filosofia política anarquista é intrinsecamente antiestatal, anticapitalista, antidiscriminatória e defende a máxima da ajuda mútua, caracterizada pela solidariedade e pelo livre entendimento das pessoas, sem a necessidade de uma instituição que contenha supostamente seus sentidos utilitaristas e violentos, que os fariam matar uns aos outros. Além do mais, a teoria anarquista é a única que acredita verdadeiramente na capacidade popular de se autogovernar.
Desta forma, nega e desqualifica o enfoque liberal, baseado na concorrência, no individualismo, na forma de tratar os governados como ignorantes e incapazes, em última instância, no apotegma hobbesiano, de guerra de todos contra todos, segundo o qual o “homem é o lobo do homem”. Ao mesmo tempo, combate o darwinismo social, fundamentado na perspectiva da competição predatória.[5]
De acordo com o pensamento anarquista, existem dois prolegômenos em disputa ao longo da história da humanidade: o da liberdade e o da coerção. O primeiro, é amplamente defendido pelos libertários, que podem fazê-lo sem entrar em contradição com suas teses. Em contrapartida, o princípio da coerção é representado pelos defensores do Estado, das hierarquias, do respeito às autoridades, do capitalismo, que significa o governo de uns sobre outros, em uma palavra: a ordem. Vejamos a passagem a seguir que exemplifica bem a questão:
É que, contra todos esses partidos, os anarquistas são os únicos a defender por inteiro o princípio da liberdade. Todos os outros gabam-se de tornar a humanidade feliz mudando ou suavizando a forma de açoite. Se eles gritam: abaixo a corda de cânhamo da forca, é para substitui-la pelo cordão de seda, aplicado no dorso. Sem açoite, sem coerção, de um modo ou de outro, sem o açoite do salário ou da fome, sem aquele do juiz ou do policial, sem aquele da punição sob uma forma ou outra, eles não podem conceber a sociedade. Só nós ousamos afirmar que punição, polícia, juiz, fome e salário nunca foram, e jamais serão, um elemento de progresso; e se há progresso sob um regime que reconhece esses instrumentos de coerção, esse progresso é conquistado contra esses instrumentos, e não por eles (Kropotkin, 2007, p. 36).
Na citação acima estão algumas críticas clássicas do pensamento anarquista às outras ideologias, que veem o capitalismo como progresso, como, também, todos os elementos autoritários, sustentadores de hierarquias, discriminações e desigualdades. Por certo, elas não recriminam a existência de punição, polícia e juiz, presentes nas plutocracias e nos ‘socialismos’ autoritários.
Esses approaches estão imbuídos da alucinação da Estadolatria, idolatria do Estado, enquanto instituição necessária e imprescindível para a sociedade. Ao longo da história, moderna e contemporânea, todos os politólogos, desde Maquiavel, passando por Hobbes, Locke, Montesquieu, Hegel até Marx, de diferentes maneiras, justificaram a existência do Estado, como instituição fundamental para a organização da sociedade, da sua defesa, ou mesmo, para acabar com as classes sociais, no caso do último.
É necessária outra ressalva. Nossa concepção de Estadolatria é absolutamente diferente da utilizada por alguns teóricos do pensamento plutocrático neoliberal desavergonhado. Eles defendem o Estado mínimo, composto prioritariamente e quase que exclusivamente pelo Judiciário e as polícias, para garantir a propriedade, o lucro e a vida dos proprietários. As demais questões como saúde e educação seriam compradas no mercado. Essa concepção também é estadolátrica, pois não aponta para o fim do Estado, mas, apenas, para um direcionamento de suas funções, com vistas a garantir o pleno funcionamento da economia capitalista, sem possibilidade de qualquer papel mais generoso para os governados.
Assim, só o pensamento anarquista pode estabelecer a crítica ao Estado, enquanto instituição de coerção, de controle, de autoridade, que atenta contra liberdade dos governados, opondo-se, frontalmente, à tradição da Estadolatria. Nos nossos termos, essa categoria funciona como uma camisa de força, que obsta reflexões teóricas para além da conformação social coercitiva, centralizadora, e de superação da dicotomia entre governantes e governados. O oposto à Estadolatria é, portanto, o autogoverno, ou autogestão, em todos os sentidos da vida.
Os amantes do Estado, quando não pregam veementemente a necessidade de coerção estatal para melhor garantir a vida em sociedade, ou mesmo implantar a igualdade, preconizam, em última instância, seus dotes de razão, seja para defesa, supostamente, de toda sociedade, seja para garantir os interesses de uma classe social. Em todos esses casos, a liberdade é sacrificada em nome da autoridade, da Estadolatria.
Aqui identificamos mais um grande diferencial entre anarquismo e aquilo que unifica marxismo e liberalismo. Para os libertários, os governados são dotados de saber e são capazes de autogovernar-se. Para os liberais e socialistas governamentais, eles devem ser guiados/conduzidos/governados. Essa direção deve ser realizada pela intelligentsia do partido ou do governo. A população deve ser educada a gostar, para os marxistas, da igualdade, e, para os liberais, das leis do mercado. Em síntese, os não proprietários continuarão governados, sob argumentação de que isso será para o seu próprio bem. Essa alegação foi amplamente defendida por Thomas Hobbes, no século XVII, ao justificar o Estado e o governo para, dissimuladamente, garantir a vida dos governados, que tinham que abrir mão de sua liberdade. Essa perspectiva tem sido reforçada de diferentes maneiras por diversos teóricos até hoje. Esse é um dos aforismas fundamentais que justificam os governos, plenamente combatido pelos anarquistas. Pelo exposto, essa obra fará uma crítica frontal às interpretações estadolátricas.
1.2.2 DO CONCEITO DE PLUTOCRACIA
O conceito de plutocracia vem do grego (ploutos: riqueza; kratos: poder); nesse sentido busca representar um sistema político governado por um grupo de pessoas que detém o poder econômico ou está a seu serviço. Trata-se do governo do dinheiro, do capital, da riqueza, em favor dos ricos. Ele é materializado quando os interesses dos proprietários dos meios de produção são priorizados com relação aos dos governados, sem dinheiro. Assim, vigora uma dominação exercida pela classe mais abastada da sociedade, com influência ou poder preponderante do capital. Essa se constitui na essência do capitalismo. Portanto, todo e qualquer governo, que garanta o pleno funcionamento e as instituições do capitalismo, é plutocrático.
A utilização do conceito de plutocracia se deve ao fato de não acreditarmos que o povo realmente governe em nenhum lugar. Partindo dessa premissa, a categoria democracia (governo do povo) não representa fielmente a realidade da organização política no mundo capitalista, apesar das tentativas de ilusão com o uso conceitual. Em resumo, empregaremos aqui a definição para explicitar que o regime oligárquico-representativo[6] vigente se solidifica como espaço perfeito para o domínio dos governantes da economia (empresários, banqueiros, especuladores financeiros), donos do capital, que têm suas principais instituições garantidas, como a propriedade privada dos meios de produção, e a exploração de uns sobre outros, que lhe é consequente.
Sob esse sistema, cabe aos governados obedecer e trabalhar para o enriquecimento de seus patrões. O direito ao voto não muda essa situação e apenas legitima o poder dos donos do vil metal, tendo em vista que as campanhas eleitorais também são atravessadas pela influência do dinheiro.
É importante fazermos mais um acréscimo. Entendemos que existem diferentes formas de regimes plutocráticos que podem ser classificados da seguinte maneira.
1) Plutocracia Liberal: quando a governança política tem como principal objetivo afiançar a melhor forma de acumulação de capital dos governantes econômicos. Preocupa-se apenas em garantir a propriedade privada dos meios de produção e o cumprimento dos contratos. Não permite a criação de direitos sociais para os governados, pois entende que seria uma intervenção na economia, no livre mercado. Esse modelo perdurou, principalmente, no século XIX, até as grandes ações diretas dos trabalhadores contra o sistema no século XX.
2) Plutocracias Corporativista Estatal e Social-Democrata: quando sob forte pressão dos governados por direitos e às vezes com fortes demandas pelo fim do capitalismo, garantiram o sistema capitalista, intervindo fortemente na economia, criando direitos para os trabalhadores, amenizando a exploração, mas ampliando a institucionalização e o controle sobre os governados. As características específicas dessas plutocracias são as seguintes:
a) Plutocracia Corporativista Estatal: quando essas alterações foram realizadas sem qualquer participação dos governados nas escolhas políticas, com forte repressão sobre os rebeldes e revolucionários, simultaneamente, com ampla participação dos governantes da economia, fortalecendo o paternalismo e a dependência com relação aos governantes políticos de turno. Em suma, acontece quando trabalhadores são tutelados, seus sindicatos controlados, mas, de alguma maneira, alguns direitos sociais são criados, como forma de amenizar a oposição dos trabalhadores ao sistema, desarticulando suas lutas. Simultaneamente, os empresários possuem grande inferência nos rumos da governança política, enquanto os trabalhadores são excluídos de participação na elaboração de políticas públicas. Esse modelo é típico dos governos conservadores/autoritários. Esse exemplo serve para classificar as governanças políticas da grande Era Vargas, no Brasil; e, na Venezuela, os breves governos da AD na década de 1940 e o Pacto de Punto Fijo até 1988, antes da chegada de Andréz Peréz na governança política em 1989.
b) Plutocracia Corporativista Societal: acontece quando o grau de organização dos trabalhadores é bastante significativo a tal ponto de ameaçar sistematicamente a manutenção do sistema. Por consequência, os representantes, legítimos ou não, dos governados são chamados a compor com os governantes da economia e os governantes da política para criarem, por meio de órgãos tripartites, políticas públicas e direitos sociais. O capitalismo é mantido, mas com amplo leque de direitos. Esse modelo tem sido adotado nos países nórdicos desde meados do século XX.
c) Plutocracia Social-Democrata de las Calles: os trabalhadores são tutelados e controlados, mas em menor medida que a plutocracia corporativista estatal. São criados direitos sociais, em função das lutas dos governados, como forma de amenizar as ações diretas contra o sistema. As ruas servem como grande termômetro das políticas públicas. Os governados são consultados através de plebiscitos, referendos e escrutínios diversos, tendo participação nas escolhas das políticas públicas. Igualmente, quando os interesses corporativos de aumento dos lucros dos governantes da economia foram negligenciados. O diferencial para o modelo corporativista societal é que os governantes da economia possuem pouca participação nos rumos da governança política, embora o capitalismo seja garantido. Esse exemplo serve para caracterizar a Era Chávez.
3) Plutocracia Neoliberal: quando os governantes políticos tomam atitudes mais agressivas com vistas a destruir direitos sociais dos governados, objetivando ampliar as condições de acumulação de capital, principalmente dos governantes econômicos multinacionais, do capital financeiro e especuladores econômicos em geral, favorecidos com a chamada abertura dos mercados. Elas podem ser de dois tipos:
a) Plutocracia Neoliberal Desavergonhada: quando a governança política garante, prioritariamente, os interesses dos ricos, praticamente sem limites, isto é, governa para os capitalistas e tem pouca preocupação em parecer defender os interesses dos trabalhadores. Os direitos sociais são vistos como obstáculos para o bem-estar dos empresários. Assim, ataca-se esses direitos. Sequer tentam passar explicações para os governados, normalmente, buscando justificar-se por um discurso técnico-científico, sem preocupações com o bem-estar dos governados. Foram exemplos de plutocracias neoliberais desavergonhadas: os governos de Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique e Michel Temer, no Brasil; e Carlos Andréz Peréz, na Venezuela.
b) Plutocracia Neoliberal Dissimulada: governa abertamente para os ricos, garantindo seus rendimentos sem limites, mas procura aparentar defender os interesses dos governados. Tem vergonha de assumir a pecha de neoliberal, combatendo o conceito retoricamente, em função do compromisso com os sindicatos; mas, na prática, implementa suas políticas e ataca direitos dos trabalhadores, utilizando-se de um discurso reformista que seria a princípio em prol dos trabalhadores. Encontra base em partidos que se dizem socialistas, trabalhistas, sociais-democratas, progressistas, ou, simplesmente, de esquerda, que implementam o programa conservador/liberal, dissimuladamente. A Era petista no Brasil expressa-se como o grande exemplo. No mundo, esse modelo foi amplamente adotado por partidos com histórico em base popular/operária/socialista/trabalhista e quando chegou à governança política implementou um programa que não caminhou para o socialismo, tampouco para criação de direitos sociais. São exemplos o Labour Party, na Inglaterra[7]; os partidos socialistas Francês e espanhol, o Partido da Social-Democrata Alemão[8] e diversos outros pelo mundo afora.
4) Conciliação Masoquista de Classe: antes de terminar, é importante falar de um último conceito. Durante nossas pesquisas identificamos que alguns governantes políticos se apresentaram para os governados como generosos ou estavam sob a pressão destes para a criação de direitos. Assim, propuseram as chamadas conciliações ou concertações de classe. Na maioria das vezes, consistiu em garantir os principais institutos do Estado, do capitalismo, com a sua já sabida exploração, e a criação de alguns direitos trabalhistas. Esse fenômeno aconteceu quando os trabalhadores estavam fortemente organizados e praticando ações diretas. Quando os governados estavam mais fracos e desorganizados, alguns governantes políticos propuseram também conciliações, que praticamente não geravam nenhum ganho concreto para aqueles, mas muitos para os governantes da economia. Denominamos essas supostas concertações como Conciliações Masoquistas de Classe. Esse conceito visa desmascarar essas ações políticas, normalmente realizadas por plutocracias dissimuladas como algo positivo para os governados.
Explicando os conceitos por outras palavras. Quando o capitalismo, com todas as suas instituições – como a propriedade privada dos meios de produção, as desigualdades sociais, a exploração social, as hierarquias – está garantido, significa que os proprietários, os ricos, têm seus negócios em pleno funcionamento. Ao mesmo tempo, os não proprietários são obrigados a trabalhar, vendendo sua força de trabalho àqueles, em troca de um salário. Para tanto, existe uma instituição para afiançar essas desigualdades, sem que os explorados tomem as riquezas dos ricos. Essa instituição é o Estado, governado por um grupo de pessoas que trabalham para o funcionamento do sistema. Assim, denominamos essa governança por plutocrática. Ela tenta passar a ideia de democrática, como forma de se legitimar. Não obstante, para frear a luta contra o capitalismo, trabalha por dois caminhos: 1) cooptação do movimento dos governados, trazendo-o para a institucionalidade e criando direitos sociais, mas sem acabar com a exploração dos trabalhadores; 2) funciona como uma ditadura para grupos específicos, potenciais ameaçadores dos interesses e das posses dos ricos. Em qualquer dos casos, o potencial de repressão é sempre pensado para pronto emprego, pois essa é a essência do Estado, a preparação para a guerra, seja contra o inimigo externo, seja o interno. Por isso, a simples garantia do capitalismo, será sempre baseada em uma Ditadura Plutocrática-Militar.
1.2.3 DAS DITADURAS: MILITAR-PLUTOCRÁTICA-DESAVERGONHADA E
PLUTOCRÁTICA-MILITAR-DISSIMULADA
Ao longo do livro usaremos os conceitos de Ditadura Militar-Plutocrática-Desavergonhada e Ditadura Plutocrática-Militar-Dissimulada, por entendermos que a existência de Estado levará necessariamente à instalação de uma tirania que buscará por todos os meios garantir as instituições estatais e o modo de produção protegido por ela.[9] Por mais democrática que possa parecer, a governança política – gerida diretamente por um político profissional ou por qualquer representante direto das outras governanças –, impõe-se pelo seu militarismo contra os setores ‘perigosos’, não obedientes, ou insubordinados, dos governados. Assim, os mais pobres (situação agravada quando se faz parte dos grupos alvos das opressões sociais) junto com os revolucionários (rebeldes, guerrilheiros, insurgentes) estão sempre sob a mira da governança penal, seja sob uma Ditadura Militar-Plutocrática-Desavergonhada, governada diretamente por militares, seja sob uma Ditadura Plutocrática-Militar-Dissimulada, governada diretamente por civis. Contudo, ambas se amparam fundamentalmente nas repressões militares, quando necessárias, para a manutenção do capitalismo em favor de todos os governantes. Para referendar que vivemos sob uma ditadura teríamos muitos exemplos. A ocupação militar no Rio de Janeiro, em 2018, constitui-se apenas como um capítulo de uma longa intervenção. Fora do Brasil, citemos Ludd (2002), depois dos grandiosos protestos de Seattle, em 1999, com uma das maiores formações do Black Bloc.
“O toque de recolher foi decretado (desde a Segunda Guerra que isso não acontecia em Seattle). Pessoas foram presas em frente às suas casas, simplesmente por estarem à noite na rua. Se não bastasse, a Guarda Nacional foi chamada e a corte marcial foi decretada, isto é, os direitos constitucionais deixavam de vigorar. Isto nos EUA, a terra da “democracia”. Vemos como a “democracia” é uma máscara usada pelos poderosos, que logo é tirada quando as coisas não andam do jeito que eles desejam.”
As principais funções da plutocracia são: garantir a reprodução do dinheiro e a segurança da propriedade privada dos meios de produção, deixando a proteção da vida e do bem-estar dos governados em segundo plano, sobretudo se forem alvos das governanças sociais. Por isso, ela sempre se expressa como uma ditadura peculiar para determinados grupos sociais, que de alguma maneira fogem do script que os governantes querem que exerçam, e de alguma maneira significam alguma ameaça à ordem. Nessa situação, vivemos sob comando de um Estado, que impõe uma ditadura sobre as ovelhas desgarradas.
A utilização do termo Desavergonhada para caracterizar as ditaduras militares-plutocráticas, tem por objetivo explicitar que ela foi instaurada por meio da tomada da governança política recorrendo a quarteladas, não sendo alcançada por intermédio de eleições[10], e a repressão aos opositores é mais aberta, menos velada e, algumas vezes, mais sangrenta. Utilizamos a categoria Dissimulada, para designar quando um grupo de pessoas ocupa o governo por meio de eleições, todavia, amparam-se no poderio militar do Estado para oprimir os rebeldes e ameaçadores da ordem, baseada na acumulação de capital. Em outras palavras, significa dizer que apesar de um verniz “democrático”, as governanças políticas, eleitas ou não, amparam-se no militarismo para combater os rebeldes e possíveis ameaçadores da propriedade privada, da plutocracia.
Na prática, as formulações de Ditadura Militar-Plutocrática-Desavergonhada e Ditadura Plutocrática-Militar-Dissimulada servem para explicitar que determinadas populações vulneráveis como de jovens negros e indígenas, que jazem nas favelas e periferias, e grupos revolucionários/contestadores do establishment, vivem constantemente sob a mira do fuzil, quando não são exterminados, torturados, assassinados, encarcerados por governantes penais com a anuência dos demais governantes em qualquer tipo de regime que garanta o capitalismo[11], marcado pelas desigualdades sociais, onde uns poucos exploram e governam a grande maioria.
Sem embargo, cabe uma última ressalva, a repressão realizada pela governança penal sob as supracitadas ditaduras não é para todos. O governado que não atentar/ameaçar a ordem estabelecida, não questionar as opressões sociais e suas governanças, e ainda acatar sem grandes percalços as leis impostas, respeitando a propriedade privada alheia, as desigualdades, a exploração como natural, não sofrerá nenhuma moléstia por parte dos governantes. Assim, os governados adaptados nem acreditarão que estão sob ditaduras, porque efetivamente eles não são alvos. Como em um rebanho de animais guiados por um pastor, somente leva chicotada o animal que se desgarrar do caminho determinado pelo ‘governante’. Aqueles que seguirem de cabeça baixa, não sofrerão qualquer maltrato, basta obedecer.
1.3 DAS NOVE GOVERNANÇAS/OPRESSÕES SOCIAIS
“A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de dominação; estas são apenas e, antes de mais nada, suas formas terminais. Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais” Michel Foucault (1988).
Ao tratarmos as múltiplas formas de governanças/opressões sociais, o mais importante a se dizer é que não fomos nós que as assinalamos. Elas já são abordadas/discutidas há muito tempo por diversos teóricos e coletivos políticos, e sentidas por um sem número de pessoas que as sofrem cotidianamente. Ninguém precisa explicar para uma mulher o que é o patriarcalismo; para um negro, o que é o racismo; para um LGBTQIA+, o que é homofobia; para um praticante da umbanda ou candomblé, o que é implicância religiosa; para um trabalhador pobre, o que é a exploração/discriminação capitalista e o poder que um patrão exerce sobre sua vida; para um rebelde, contestador da ordem ou devedor de impostos, o que é a perseguição oficialista; para um obeso ou deficiente físico, o que é rejeição da estética produtiva; para um analfabeto, o que é o preconceito acadêmico-científico; e para um estrangeiro, o que é hostilidade nacionalista, xenofóbica, ufanista. Portanto, o que buscamos apresentar aqui não se encerra como nenhuma novidade, mas tem por objetivo reforçar a denúncia da existência dessas opressões para melhor superá-las. Em contrapartida, como parte da lente anarquista, a única novidade que procuramos proporcionar é entender essas opressões como governanças sociais, ligadas diretamente às governanças institucionais, como mostraremos adiante.
Vejamos, a seguir, apenas algumas evidências, em síntese, das governanças sociais, e depois analisá-las-emos.[12]
1) Racial: valoriza e estabelece como referência ideal a raça branca, europeus e seus descendentes, oprimindo e/ou desvalorizando a priori, negros, indígenas, amarelos e mestiços. Desta forma, o papel destinado aos negros, indígenas e mestiços na sociedade constitui-se na banalização da sua subalternização, exploração, subjugação e idolatria da cultura branca. A supremacia branca deseja que estes achem trivial sua condição e vivam sem admoestar o Estado, suas leis, e os donos do capital. Caso não se enquadre nessa ordem, estará fortemente ameaçado a sofrer um assassinato ou virar residente permanente de um cárcere.
No Brasil, morrem 153,4% mais negros do que brancos por homicídios. Os números do estudo Homicídios e Juventude no Brasil, do Mapa da Violência 2013, mostram a brutal desigualdade e o componente de raça e de classe da violência no país. Os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde apontam que 71,4% das 49,3 mil vítimas de homicídios em 2011 eram negras – o que corresponde a 35,2 mil assassinatos.[13]
A herança do regime escravista é tão grande que negros, indígenas e mestiços são vistos ‘naturalmente’ como inferiores. Em função de tudo isso, são alvos principais da opressão capitalista, pois os piores empregos lhes são destinados.
Por outro lado, existem as resistências. Os movimentos de luta antirracista cumpriram um papel fundamental para o reconhecimento e até entrada de negros em espaços antes destinados apenas para brancos, no Brasil e no mundo. Podemos elencar as lutas com um teor fortemente revolucionário e com ação direta, como as batalhas para a formação dos diversos quilombos no Brasil e nas Américas, bem como as lutas indígenas pela demarcação de suas terras e sobrevivência de suas culturas. Não menos importante, as ações nos EUA, pelos direitos civis, e na África do Sul pelo fim, oficial, do apartheid. Portanto, todas as manifestações antirracistas e de autodeterminação dos povos negros e indígenas, por meio da ação direta e da luta revolucionária, foram e são fundamentais.
A essência da opressão racial traduz-se no estabelecimento da governança branca sobre as demais raças.
2) Patriarcal: valoriza e estabelece como referência ideal o poder ‘ordinário’ dos homens, oprimindo e/ou desvalorizando a priori, as mulheres. A violência contra a mulher tem alcançado números alarmantes. Vejamos os números do Mapa da Violência 2015[14]:
Dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados em 2013 no Brasil, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que em 33,2% destes casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex. Essas quase 5 mil mortes representam 13 homicídios femininos diários em 2013.
O supracitado mapa revela, ainda, que entre 1980 e 2013, 106.093 brasileiras foram vítimas de assassinato. De 2003 a 2013, o número de vítimas do sexo feminino cresceu de 3.937 para 4.762, ou seja, mais de 21% na década. O homicídio de negras aumentou 54% em 10 anos.
Para lutar contra o patriarcado, muitas corajosas criaram movimentos feministas que almejavam paridade com os homens no meio público, isto é, buscavam participar de vida para além da sua própria casa, o que lhe era totalmente vedado. O papel que o patriarcado destinou à mulher era de cuidar das crianças, da casa e de servir como objeto de desejos sexuais para os tidos como os chefes de família, seus verdadeiros governantes.
Por outro lado, os movimentos feministas lutaram e almejaram, por exemplo, o direito ao voto, por acesso ao estudo e ao trabalho fora de casa, e, depois, por salários iguais. Aliás, é importante frisar que essas lutas continuam até hoje, embora algumas conquistas importantes tenham sido realizadas.
A essência dessa opressão constitui-se no estabelecimento da governança masculina.
3) Sexual[15]: valoriza e estabelece como referência ideal os heterossexuais, oprimindo e/ou desvalorizando a priori, Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers, Intersexuais e Assexuais (LGBTQIA+). O Brasil é o país que em números absolutos possui o maior número de assassinatos de transexuais do mundo.[16]
Com reação a essa opressão, as lutas dessas comunidades foram fundamentais para conquista de direitos civis e sociais, inclusive, em alguns países, com o reconhecimento da união estável ou casamento entre pessoas do mesmo sexo, possibilidade de alteração do nome civil, adoção de crianças independente da orientação sexual do responsável, ou programas de saúde pública destinados a grupos específicos.[17] Todavia, a discriminação social sobre esse grupo continua a passos largos. As igrejas e os governantes penais, de um modo geral, são as instituições que mais estimulam essa opressão.
Sua essência reside no estabelecimento da governança do heterossexual.
4) Acadêmica-científica: valoriza e estabelece como referência ideal as pessoas com formação universitária, oprimindo e/ou desvalorizando a priori analfabetos e pessoas com pouco estudo, apresentando-as como incapazes, inferiores, invisíveis.
Essa é a governança por excelência do ‘saber científico’, produzido nas universidades, e na maioria das vezes completamente descolado da realidade popular. Trata-se da opressão que assevera que os únicos que podem produzir saber são os ‘doutos’, especialistas em defender a ordem. Uma pessoa que não teve oportunidade de estudar, porque tinha que trabalhar desde criança para garantir a sobrevivência sua e da família, é oprimida por outros que nunca labutaram durante a infância, a adolescência e, às vezes, até durante a idade adulta.
O âmago dessa opressão fundamenta-se no estabelecimento da governança do saber acadêmico, científico, técnico, erudito, em detrimento do saber popular, daquilo que Foucault (2005) chamou de saber das pessoas, que eram transformados em saberes sujeitados ou sepultados. É exatamente essa tirania que pratica o epistemicídio, valorizando apenas o saber produzido na Universidade. Só no Brasil, de acordo com pesquisa do IBGE, em 2016, existiam 11,8 milhões de adultos analfabetos e 51% da população tinha apenas o ensino fundamental. Todos esses são alvos constantes dessa opressão.
5) Capitalista: valoriza e estabelece como referência ideal o rico, proprietário, possuidor de capital, de dinheiro, o chefe, o patrão; e oprime, desvalorizando, a priori, os trabalhadores, pobres e miseráveis. Sob essa perspectiva, aqueles são os vencedores e estes os perdedores. Essa governança se expressa de várias maneiras, mas ela é por excelência do dinheiro, da propriedade privada dos meios de produção e subsistência, consubstanciando-se na divisão entre donos de capital e os proprietários, de um lado, e dos despossuídos desses meios, por outro. Assim, na sociedade consumista, na qual vivemos, estes são coagidos a vender sua força de trabalho para aqueles e ainda são vistos como inferiores por não possuírem bens caros de consumo, como roupas, carros, casas e até comida. A exploração, alienação, extração de mais-valor, subalternização dos não proprietários é o combustível dessa opressão.
Podemos elencar também o aspecto da própria opressão habitacional como seu cerne. Nesse caso, os oprimidos são os sem-terra, sem-teto, escravos do aluguel e moradores das favelas e periferias. Se a pessoa mora em uma favela e/ou em lugar com grande concentração de pobres e miseráveis, com características de não respeitar a propriedade privada alheia, a priori, será considerada perigosa, sendo malvista e terá dificuldade para conseguir empregos e até amizades para além do seu meio. Ainda, existem os indivíduos que não têm um teto para abrigar-se do sol, da chuva e do frio. Suas companhias são a lua e os ratos, que os impedem de guardar uma comida para o dia seguinte. Sem dinheiro, a pessoa também não tem acesso a outros direitos básicos, como saúde e educação de qualidade. Sofrem dessa opressão, os pobres, miseráveis, mendigos, desempregados, e os milhões de trabalhadores precarizados, terceirizados, com baixíssimos salários, que mal conseguem pagar uma refeição, um aluguel, enfim, questões básicas para uma vida digna.
A ditadura do capital é tão profunda que com a posse do vil metal se tem acesso a tudo, sem ele, a nada. Nesse caso, a pessoa é vista como pária na sociedade. Essa ditadura independe da cor da pele, raça e origem. Sua essência reside no estabelecimento da supremacia do capital, do dinheiro, da plutocracia.
6) Religiosa: valoriza e estabelece como referência ideal, as religiões judaico-cristãs, oprimindo e/ou desvalorizando, a priori, os ateus e adeptos de outras religiões/crenças/seitas. Essa governança é bastante antiga, desde a Idade Média, por exemplo, na Europa, os inquisidores da Igreja Católica perseguiram as ‘bruxas’, ‘feiticeiras’ e os hereges. Em algumas cidades europeias a maioria das mulheres foi queimada nas fogueiras;[18] na Alemanha hitlerista, os ciganos e os judeus foram igualmente perseguidos pelos nazistas. As crenças indígenas foram rechaçadas pelos clérigos europeus. As religiões de matriz africana foram tidas como de culto ao demônio por muitos adeptos judaico-cristãos. Os árabes tiveram suas crenças oprimidas por muitos cristãos. Atualmente, no Brasil, várias perseguições e discriminações são realizadas com ataques a terreiros de umbamba e candomblé. No mundo, acontece a intolerância com relação aos islâmicos. Por fim, o cristianismo primitivo que nasceu revolucionário também foi perseguido pelas autoridades da época.[19]
A essência dessa opressão constitui-se na persecução ao culto do diferente e está fortemente amparada no dogma religioso que se preza. Como todo dogma, ele se apresenta como portador da verdade absoluta, sendo geralmente intolerante com o outro. Pelo exposto, no mundo ocidental, atualmente, essa opressão busca o estabelecimento da governança das religiões judaico-cristãs.
7) Oficialista: valoriza e estabelece como referência ideal o ‘cidadão’ cumpridor dos seus deveres, que respeita as instituições (estatais, capitalistas, religiosas), vota em pessoas para lhes governar sempre que é convocado, idolatra as forças de repressão e os governantes. Essa opressão atua contra e/ou desvaloriza, a priori, os rebeldes, revolucionários, contestadores do sistema, não seguidores das leis e insubordinados. Sua essência materializa-se no estabelecimento da supremacia da governança jurídica, das leis, da obediência, do Estado, do modelo padrão de cidadão cumpridor dos seus deveres e não contestador da ordem.
8) Estética produtiva: esta governança social apresenta dois padrões ideais: a) do trabalhador cumpridor de ordens e tarefas, pontualmente, e com ‘sorriso no rosto’. Sempre pronto para fazer hora extra, sem se atrasar, nem faltar ao trabalho e, ainda, prima pela riqueza do chefe, produzindo o máximo possível no menor tempo e sem reclamar por aumento de salário; b) do corpo ‘perfeito’: homens musculosos e mulheres esbeltas, altas, com curvas (corpo tipo violão), sem estrias e celulites, seios ‘durinhos’, cabelos lisos, com aparência juvenil. Estes são os modelos de propaganda das TVs. Trata-se do tipo ideal almejado pelos patrões para trabalhar no comércio, nos meios de comunicação e em muitas outras atividades. Na realidade, a ideia que se quer passar é de uma pessoa produtiva, ‘bela’ e eficiente, que trabalha sem parar, sem limitações, sem deficiências físicas ou mentais. Aqui, portanto, entra a ideia do capacitismo.[20] Estas opressões atuam contra e/ou desvalorizam, a priori, os deficientes físicos, obesos, idosos, fracos, portadores de alguma doença ou vírus, raquíticos, desdentados, ‘feios’.[21] Todos que fujam dos padrões estabelecidos pela dita moda da estética produtiva são taxados e discriminados como ‘escrotos’ e, por exemplo, dependendo da situação têm grandes dificuldades para conseguir um emprego. É uma situação absolutamente constrangedora e triste, quando alguém sabe que não conseguiu vender sua força de trabalho, porque não pertencia aos padrões desejados de beleza estabelecidos por essa governança.
Em suma, em uma sociedade voltada para o mercado e para obtenção de lucros acima da vida, as pessoas são vistas e avaliadas pela sua ‘embalagem’, pela máscara, pela imagem exterior. Isto posto, os oprimidos pela estética produtiva não têm espaço em muitos empregos. Não passam pela entrevista. Em grande medida, só conseguem ocupações para cargos de baixos salários e/ou de condições insalubres que não são procurados por aqueles que atendem aos seus padrões. Por outro lado, estar enquadrado pelos arquétipos almejados por essa governança, pode ajudar na conquista do emprego, como galgar postos mais altos na carreira. A quantidade enorme de desempregados favorece a seleção com base na beleza. Uma última ressalva. A opressão da estética produtiva pode parecer inócua para alguns, mas ela causa sérios problemas psicológicos e de autoestima que podem levar à depressão e até à morte.
9) Xenofóbica, ufanista, nacionalista: podemos dizer que essa opressão alicerça a base central de todas as outras, pois valoriza e estabelece como referência ideal os seus iguais que possuem os mesmos traços do corpo, a mesma cor da pele, a mesma cultura, a mesma língua, os mesmos costumes, o mesmo sotaque e discrimina os diferentes, oprimindo-os e/ou desvalorizando-os.
A pedra angular dessa governança sustenta-se no temor ou antipatia pelo que lhe é incomum, ou estranho, ‘feio’ e não pertence ao seu ambiente. Em resumo, a xenofobia só reconhece aquilo que lhe parece como seu semelhante. Assim, o fundamento do despotismo patriarcal está em uma certa ‘xenofobia’ ao feminino, ou misoginia; bem como, o sustentáculo da governança branca, encontra um certo ‘nacionalismo ufanista xenofóbico’ europeu. Podemos dizer o mesmo para as demais tiranias de fundamento sexual, acadêmica-científica, capitalista, religiosa, da estética produtiva e oficialista que, respectivamente, destinam tratamento xenofóbico ao homossexual, ao analfabeto, ao pobre, ao não adepto das religiões judaico-cristãs, ao deficiente, idoso, ‘maltrapilho’ e ao rebelde. A força dessas opressões está na ideia imaginada de nação.
A essência da governança nacionalista, xenofóbica e ufanista consubstancia-se no ódio ao outro, na intolerância, na perseguição, na falta de alteridade, na ausência de respeito, na cegueira generalizada e na ‘esquizofrenia’ que em princípio desconfia dos diferentes. Enfim, sua essência é a guerra.
Essa opressão historicamente caminhou com o referencial do orgulho e do ego exacerbado, que levou povos inteiros à batalha contra outros, sem que a maioria das pessoas sequer se conhecesse. Uma guerra que também é ao desconhecido e/ou ao dessemelhante.
Essa opressão também ocorre no interior de um mesmo país, quando, por exemplo, no Brasil, alguns grupos do sul/sudeste se sentem superiores e discriminam pessoas do norte/nordeste.
O nacionalismo tem como sustentáculo a ideia da unidade entre alguns para combater, subalternizar, oprimir, outros. Esse é o fundamento da discriminação, da desconfiança, que gera medo, insegurança, e, por consequência, xenofobia ufanista.
A opressão xenofóbica, além se ser a raiz de todas as outras, alicerça sua própria governança direta e sem intermediários, atentando contra os estrangeiros, principalmente, se vier de países periféricos, se forem negros, indígenas, amarelos e mestiços, pobres ou miseráveis, cultuar religiões diferentes da do grupo predominante, tiver costumes diversos etc. Enfim, todas as tiranias trabalham em conjunto para excluí-los, dada a ligação natural e intrínseca que possuem com o nacionalismo.
Com a crise migratória, vivenciamos a origem do crescimento de simpatizantes de partidos protofascistas, cuja sustentação principal está na negação do estrangeiro (branco, negro, mestiço ou indígena) e na extrema reivindicação do suposto nacionalismo. Esta é a opressão narcisista, que só admira a si mesmo, e procura no outro um espelho seu, em todas as circunstâncias.
1.3.1 SÍNTESE DAS GOVERNANÇAS SOCIAIS
Simultaneamente, existem diferentes e múltiplas formas de opressão/governança social que não foram detectadas aqui. Em comum, elas não necessariamente são disseminadas pelo Estado, mas daquilo que Foucault (2001) chamou de “microfísica do poder”. Elas irradiam da família, da escola, das universidades, dos círculos de amigos, do local de trabalho, das igrejas, dos meios de comunicação, das festas, dos estádios esportivos e cada vez ganham mais força nos grupos que são formados nas redes sociais.
Por outro lado, os encontros entre as pessoas também proporcionam a resistência às opressões e podem vir da família, da escola, das universidades, enfim, das mesmas instituições que geram as discriminações. As redes sociais cumprem novamente um papel fundamental nesse processo, pois facilitaram a reunião de governados com ideias similares, mesmo distantes fisicamente.[22] Simultaneamente, as governanças estão em todos os lugares, mas, o que nos conforta, é que a luta pela libertação, também.
Nesse sentido, cabe excelente reflexão que expressa bem essa resistência, difundida pelo EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) quando os governantes especulavam sobre a identidade do subcomandante Marcos.
Marcos é gay em São Francisco, negro na África do Sul, asiático na Europa, hispânico em San Isidro, anarquista na Espanha, palestino em Israel, indígena nas ruas de San Cristóbal, roqueiro na cidade universitária, judeu na Alemanha, feminista nos partidos políticos, comunista no pós-guerra fria, pacifista na Bósnia, artista sem galeria e sem portfólio, dona de casa num sábado à tarde, jornalista nas páginas anteriores do jornal, mulher no metropolitano depois das 22h, camponês sem-terra, editor marginal, operário sem trabalho, médico sem consultório, escritor sem livros e sem leitores e, sobretudo, zapatista no Sudoeste do México. Enfim, Marcos é um ser humano qualquer neste mundo. Marcos é todas as minorias intoleradas, oprimidas, resistindo, exploradas, dizendo ¡Ya basta! Todas as minorias na hora de falar e maiorias na hora de se calar e aguentar. Todos os intolerados buscando uma palavra, sua palavra. Tudo que incomoda o poder e as boas consciências, este é Marcos.[23]
1.4 DAS CINCO GOVERNANÇAS INSTITUCIONAIS
1.4.1 DA GOVERNANÇA POLÍTICA
A governança política é habitada pelos seguintes atores: a) governantes políticos (presidentes, reis, imperadores, ditadores, ministros, deputados, governadores, prefeitos, vereadores, burocratas do alto escalão governamental). Esses podem ser divididos em dois grupos: governantes do Executivo e do Legislativo. Na parte hierárquica inferior dessa governança estão: b) governados politicamente (todos que devem obedecer às leis e políticas empregadas por aqueles). O lócus, por excelência, da governança política, é o Estado. Os governantes políticos têm o poder da lei, do decreto, das políticas públicas, de aumentar ou diminuir a verba para a saúde e a educação, de aumentar ou diminuir as leis penais, as políticas de encarceramento, de declarar perseguições racistas e/ou guerras, de aumentar ou baixar as taxas de juros, câmbio, de mandar reprimir e controlar os governados.
Todo o dinheiro público arrecadado com os impostos está sob seu domínio. Diga-se de passagem, um dinheiro fácil, certo e líquido. Por isso, esse é o lugar ordinário da corrupção, da falcatrua, da troca de favores, do patrimonialismo. Simultaneamente, é o espaço da disputa, que interessa a todos os capitalistas, que almejam privilégios de contratos e de financiamento pelo dinheiro público. Os representantes dos setores empresariais, banqueiros, latifundiários (governantes da economia) possuem acesso direto aos governantes da política, sobretudo, se foram financiadores da empreitada eleitoral, ou se apresentam com potencial para bancar as futuras campanhas e/ou a vida privada deles.
Sob o regime representativo, o papel destinado aos governados, pensado pelos governantes, fundamenta-se apenas no direito ao voto: a escolha daqueles que vão lhes governar, sob um sistema privilegiado, de tempos em tempos. A governança política é praticamente vedada (insulada) aos governados, enquanto é absolutamente aberta aos lobbies dos setores economicamente mais fortes. A desigualdade, portanto, de acesso aos governantes políticos é patente e determinada pelo poder financeiro do agente. Em razão disso, a denominamos como plutocracia. Ao mesmo tempo, ela buscava apresentar-se como resultado da escolha dos governados por meio do voto. A essência dessa governança é a dissimulação, a mentira, as promessas não cumpridas, enfim, a arte da enganação, da corrupção das ideias e do dinheiro, da traficância.
Resta aos governados politicamente, por conseguinte, fazer protestos nas ruas e praças para tentarem ser ouvidos pelos governantes políticos. Não obstante, na maioria das vezes, essas manifestações são solenemente ignoradas, sendo levadas em conta apenas quando ocorrem com grande contingente de pessoas e com caráter de insurgência social. Do contrário, pequenas passeatas e sem ação direta são completamente desprezadas, como se não tivessem existido. Simultaneamente, os donos do poder político buscam por todas as formas desencorajar os protestos dos governados, tratando-os com grande violência, quando com potencial de insurgência, ou, desprezando-os, quando pacíficos. Como a ação coletiva possui um alto custo de organização, disposição, tempo e coragem, os governantes jogam com essa variável e esperam o arrefecimento da luta por esses custos de manutenção.
A possibilidade de emancipação dessa governança reside no fim do Estado e de toda sua estrutura hierárquica e autoritária, passando para o autogoverno coletivo estruturado em robusta organização, em federações e comunas horizontais com ajuda mútua e solidariedade. Para tanto, só a ação direta será capaz de garantir essa emancipação.
1.4.2 DA GOVERNANÇA ECONÔMICA
A governança econômica é habitada pelos seguintes atores: a) governantes econômicos (proprietários dos meios de produção e subsistência: patrões, chefes, donos das fábricas, terras, empresas e grandes conglomerados comerciais, banqueiros, acionistas etc.) e b) governados economicamente (todxs que devem obedecer a um ou mais governantes econômicos no local de trabalho, em sua casa ou em qualquer ambiente produtivo, comercial ou financeiro). Essa é a governança por essência da produção social que, sob o regime capitalista, transforma tudo em mercadoria. A sua mola mestra é o dinheiro. Ela se materializa em alguns princípios que se retroalimentam, o principal deles, é o da desigualdade social e econômica. Por consequência, ela se nutre de uma sociedade hierarquizada e autoritária, cujo domínio dos governantes econômicos apresenta-se como inquestionável. Ao mesmo tempo, a sua situação é diferenciada, pois existem distintos graus de comando e poder que estão diretamente ligados à quantidade de capital que se possui e/ou que se ganha ou pode ganhar. Assim, temos governantes econômicos com diferentes condições de poder, sobretudo de influenciar outros governantes e governados.
Sob essa governança, todo trabalhador, assalariado, vendedor de força de trabalho caracteriza-se como um governado economicamente, pois recebe ordem direta dos governantes econômicos ou de seus representantes. Por exemplo, quando um trabalhador recebe ordens de seu patrão por 40 horas semanais, aquele está sob a governança econômica deste.
Nas grandes empresas, por se tratar de uma cadeia de produção altamente hierarquizada e despótica, existem trabalhadores que exercem uma aparente função de governante, pois ditam ordens para trabalhadores subordinados. Todavia, aquele não pode ser considerado um governante econômico genuíno já que também recebe ordens superiores e a qualquer momento pode ser demitido do emprego, apesar de sua função de ‘chefia’, que é meramente aparente, porque na realidade ele é um subordinado, um governado, um capataz, um capitão-do-mato, que está simplesmente a serviço de seus proprietários.
Por fim, do ponto de vista dessa governança, as particularidades impostas pelas condições socioeconômicas, caracterizadas pela ausência dos meios livres de subsistência, associada à necessidade de dinheiro para conseguir uma vida melhor, imputam aos não proprietários uma enorme contradição: procurar um emprego de subordinação a um governante econômico, com vistas a ganhar um salário que possa lhe garantir a sobrevivência. Nesse cenário capitalista, o não proprietário se sujeita a ser explorado, alienado, subordinado, controlado, vigiado, governado por um patrão em troca de um rendimento. O sistema é tão cruel, que é, exatamente, essa exploração que garantirá o enriquecimento do proprietário, governante da economia, embora essa dominação seja, sorrateiramente, apresentada pela governança sociocultural, como uma benevolência dos patrões para com os trabalhadores.
Um camelô (vendedor ambulante), por exemplo, embora não receba um salário fixo, nem tenha qualquer garantia de direitos, representa um governado economicamente, pois está vendendo um produto fabricado por uma empresa, seja ela de grande porte ou não. Esse vendedor ambulante, ao obrigar-se a vender produtos sem mesmo ter que receber ordem direta de um governante, subordina-se ao modus operandi capitalista e a sua peculiar coação, porém, caso não venda, correrá sério risco de não ganhar dinheiro para sua sobrevivência. Então, ele, automaticamente, impõe a si mesmo, ordens da perspectiva de um patrão. Trata-se da introjeção de uma ilusão capitalista, contra a qual, é difícil se opor, pois caracterizada por uma enorme dependência, subordinação, estruturada em uma organização societal hierárquica, autoritária e vertical.
A governança econômica materializa-se como o eixo central da ‘opressão capitalista’ por meio da legitimação e da legalização da exploração do proprietário sobre o não proprietário, através da alienação, isto é, da apropriação pelo proprietário daquilo que é produzido pelo trabalhador. Em outras palavras, aquilo que o governado economicamente produz, não lhe pertence, mas é apropriado, indebitamente, como um roubo pelo proprietário. Um roubo das horas de trabalho coletiva dos governados, tal como colocado por Proudhon (2007), ou como extração de mais-valor, como, posteriormente, sublinhou Marx (1984).
Essa governança não só retroalimenta e perpassa pela opressão capitalista, mas materializa e estimula todas as demais opressões. Assim, quando um negro, uma mulher, um LGBTQIA+, um não judaico-cristão, um deficiente físico, um rebelde, um analfabeto, um estrangeiro, um pobre/miserável, não obtém um emprego ou não consegue ascender de cargo na empresa, significa, que a governança econômica, alimenta fundamentalmente todas as opressões citadas.
Em resumo, a essência dessa governança é formada pela obediência, subordinação direta, subjugação, alienação, exploração e controle.
A possibilidade de libertação dela manifesta-se no fim da propriedade privada dos meios de produção e na autogestão coletiva nos locais de trabalho, única maneira, de acabar com todas as formas de opressão da governança econômica, e com ela mesma. É importante destacar que a supressão dessa governança, não está sujeita ao voto.
1.4.3 DA GOVERNANÇA SOCIOCULTURAL
Na governança sociocultural existem quatro grandes instituições que atuam em conjunto para a manutenção/justificativa do status quo. São elas: 1) grande mídia; 2) escola (academia); 3) igreja; 4) família.
Por consequência, a governança sociocultural é habitada pelos seguintes atores: a) governantes socioculturais da grande mídia: são representados pelos oligopólios de comunicação de massa (TVs, rádios, jornais, grupos epistêmicos nas redes sociais e nas demais mídias); pela indústria cultural de Hollywood e as reprodutoras de seus modelos pelo resto do mundo, que financiados por governantes econômicos e políticos, buscam justificar e legitimar suas ações por todas as formas, inclusive, suas guerras; pela ditadura das gravadoras, que selecionam ideologicamente as músicas que podem alcançar ao grande público. Essa se materializa como uma governança sociocultural ideológica de massa. Ela está diretamente atrelada a todas as opressões sociais, e, em particular, à governança econômica, compondo-a, até mesmo, pois vende a ‘propaganda’ como mercadoria, justamente, aos governantes econômicos e políticos. Em razão disso, é comum que esteja unida a eles e, normalmente, os apoiem, em suas demandas.
b) governantes socioculturais das igrejas: padres, pastores e similares, que vendem esperança no ‘além’ para miseráveis a partir de insinuações metafísicas. Esta é uma governança estritamente conservadora, sendo a que mais resiste a reconhecer formas diferentes de sociabilidade e principalmente liberdade comportamental. Ela concretiza-se como a governança sociocultural baseada na fé e está diretamente atrelada a três opressões/governanças sociais: religiosa, por discriminar as crenças diferentes das judaico-cristãs; sexual, por só admitir heterossexuais; patriarcal, por buscar justificar a subordinação da mulher. Essa governança, ao ligar diretamente a fé ao dinheiro, está também atrelada à governança econômica, sobretudo, quando ‘industrias da crença’ são montadas com a contribuição financeira dos fiéis.
c) governantes socioculturais do saber escolar: o seu lugar privilegiado é a escola (a universidade) com seus professores/intelectuais que retroalimentam um discurso/ensino justificador do nacionalismo, das instituições estatais e capitalistas de um modo geral, da ‘participação cidadã’ e do regime supostamente democrático, que eles tanto idolatram. Essa se constitui como a governança sociocultural pela ‘educação reprodutora de conteúdos em prol do establishment’. Estes governantes alimentam as opressões/governanças sociais oficialista e acadêmica-científica, pois simultaneamente cometem o epistemicídio contra as produções revolucionárias e populares, colocando-as como saberes sujeitados, inferiores, ‘errados’.
d) governantes socioculturais da família: representada pelo chefe de família, autoritário, intolerante, que não admite visões, em casa, diferente das suas. Utiliza-se da violência como forma de fazer seus filhos e sua mulher obedecerem. Não escuta, não debate e não admite pensamentos fora de seu comando. Dessa maneira, prepara os filhos para não contestarem a autoridade e, para saber, se assim o fizerem, serão castigados pela violência, serão penalizados, receberão “chineladas”. Essa é a governança por excelência do patriarcado.
Quem são os governados socioculturais? São aqueles que assumem como suas as ideias propaladas por seus governantes, nas escolas, nas igrejas, nas TVs, nas famílias, reproduzindo-as, em conversas informais e/ou nas redes sociais (nas mais diferentes formas assumidas, como reportagens, músicas, filmes, textos, fotos, dogmas religiosos, fake News (notícias falsas) e chineladas). Normalmente, não questionam a sua situação econômica, política e social, às vezes, até justificam essa triste condição, mesmo sem ter nenhum ganho pessoal ou coletivo. Os governados socioculturais são aqueles que não produzem crítica autônoma à sua própria situação de governado e se contentam em receber ordens e conhecimentos alheios sem avaliá-los. Assim, atuam como se ovelhas fossem, obedecendo aos seus governantes e seguindo o rebanho.
Todas as ações dos governantes socioculturais, na maior parte do tempo, buscam reforçar uma interpretação de mundo que justifique a idolatria do Estado, do capitalismo, da hierarquia, temente a todo tipo de autoridade metafísica ou não.
Essa governança alicerça-se como a mais importante na divulgação/legitimação/doutrinação das nove governanças sociais discutidas aqui. É ela que historicamente estimula os preconceitos coletivos. No caso brasileiro, suas novelas em horário nobre, suas reportagens nos oligopólios de comunicação de massa, junto com padres/pastores nas igrejas, intelectuais/professores nas universidades/escolas, e pais autoritários nas famílias, trabalharam enormemente para difusão dessas discriminações.
Os alvos principais da referida governança são pessoas sem firmeza de ideias e/ou sem acesso a conhecimento alternativo, que abrem mão de produzir seu próprio saber, para ficar a mercê daquilo que outros produzem, para lhes fazer crer… num mundo surreal. Algumas, sem qualquer resistência, são guiadas como ovelhas, transformando-se em verdadeiros escravos ideológicos do sistema.
É óbvio que existem dentre os governantes socioculturais pessoas ou pequenos grupos (professores/intelectuais, religiosos, jornalistas, ‘midiativistas’, pais democráticos) que atuam na defesa dos interesses dos governados, mas esses compõem uma ínfima minoria que trabalha em contrário ao papel que lhe requer os demais governantes.
De um modo geral, Bakunin (2000) chamaria essa governança de idealista, pois busca, simultaneamente, legitimar uma autoridade exterior à natureza, baseada em ideias, que a ciência não confirma. Portanto, a essência dessa governança fundamenta-se na arte de enganar, distorcer, fazer acreditar/obedecer, por meio de mentiras, ilusões, fake news ou pela violência, que todas as demais governanças e opressões sociais são legítimas, necessárias, inevitáveis. Neste caso, não existe compromisso com os fatos, com a verdade, com a erudição. A enganação é sua mola mestra.
O dicionário da Universidade de Oxford elegeu, em 2016, a palavra do ano: post-truth (pós-verdade), buscando mostrar que vivemos em uma nova Era marcada por ela. Todavia, trata-se de um ledo engano, pois a informação baseada na mentira é praticada há séculos pelos governantes socioculturais para garantia do poder de todos os governantes. As redes sociais possibilitaram aos governados questionar largamente essas mentiras, por isso, vários protestos grandiosos foram possíveis em diferentes países. Os think tanks atuam para divulgar mentiras como uma nova forma para se evitar a autonomia dos explorados.
O fim dessa governança passa necessariamente pela democratização dos meios de comunicação, pela liberação das rádios e TVs comunitárias, pelo fim do controle das redes socais, pela libertação das crenças religiosas que buscam explicar o mundo por argumentos metafísicos, pela libertação da ideia de família tradicional e autoritária, pela troca dos conteúdos difundidos nas escolas e universidades e de seus professores. Enfim, a superação dessa governança pode ser dividida em três conceitos: autonomia, liberdade de expressão e autogestão, com troca de conhecimento sem tabus ou brutalidade.
1.4.4 DA GOVERNANÇA PENAL
A governança penal é povoada pelos seguintes atores: a) governantes penais: oficiais superiores das forças armadas ou equivalentes, das policiais estaduais, federais, tribunais penais civis e militares, e todas as forças de repressão militares ou civis e milicianos apoiados ou negligenciados por essas mesmas forças.
Esses governantes, por controlarem as armas, a espionagem, as sentenças, possuem um importante papel político para a manutenção do capitalismo, do Estado, de suas instituições e todas as governanças sociais existentes. Além de garantir a integridade física e proprietária de todos os governantes, servem também para assegurar a repressão cotidiana sobre os governados que não respeitam a ordem, principalmente nas periferias e favelas. Ao definirem quem (e como) será punido, referendam códigos de controle social, estabelecidos, autoritariamente.
Ao longo da História da América Latina, tivemos vários exemplos de assalto à governança política pelos governantes penais, que quiseram, eles mesmos, ditar as regras para todos os governados. Os tribunais penais também colaboram para a manutenção do sistema e para o encurralamento de determinados setores dos governados.
b) governados penais: populações inteiras pobres e miseráveis que ficam sob a mira constante do fuzil, normalmente sem direitos civis respeitados na prática. Se parte dessas populações vulneráveis for das etnias subordinadas como negros e indígenas, no capitalismo racista em que vivemos, a possibilidade de opressão/assassinato cresce substantivamente.
Além do mais, no Brasil, mais de 700 mil pessoas estão presas em presídios, absolutamente precários, sob governo penal cotidiano[24]. Só nos EUA, a principal potência econômica mundial, existem mais de 2,2 milhões de pessoas encarceradas e, portanto, diretamente sob a governança penal.
Essa é a governança por excelência da força, da coerção, da violência, da guerra, da prisão, da perseguição, da tortura, do assassinato, da covardia, e é a mais objetiva de todas, pois não precisa simular um tom democrático, nem como expressão do saber, como outras. Ela possui quatro alvos principais: 1) as etnias não brancas, como negros, indígenas, amarelos e mestiços, portanto, incrementa a governança racial; 2) grupos revolucionários com potencial para atentar contra a ordem, a desigualdade, o capitalismo, e/ou “bandidos” que buscam obter riquezas por meio de “ganhos fáceis”, roubando, vendendo drogas etc, ligada à governança oficialista; 3) populações miseráveis e pobres que se encontram nas favelas e periferias, ligadas à opressão capitalista; 4) comunidade LGBTQIA+, ligada à opressão sexual. Esses são os atores mais cobiçados/ameaçados pelos governantes penais. Ademais, se um grupo de indivíduos fizer parte dessas quatro especificações supracitadas, sua vida estará extremamente ameaçada pelo assassinato ou encarceramento.
Em resumo, o objetivo principal dessa governança é a garantia do capitalismo e dos princípios conservadores existentes na sociedade pela força. Ela reforça as opressões/governanças racial, sexual, capitalista e oficialista.
A supressão dessa governança passa necessariamente pelo conceito de revolução social dos anarquistas que pressupõe o fim do Estado, das polícias, do capitalismo, da propriedade privada, que possibilite a emergência do novo, da autogestão/autogoverno, da autonomia, emancipação social. O melhor conceito que se opõe direta e frontalmente à governança penal é o de abolicionismo penal.
1.4.5 DA GOVERNANÇA JURÍDICA
A governança jurídica é composta pelos seguintes atores: a) governantes jurídicos: Ministros do STF, dos tribunais superiores ou equivalentes, magistrados em geral, Procuradoria Geral da República e membros superiores do Ministério Público.
Essa governança é a responsável por aplicar e interpretar a lei. A artimanha da interpretação do Direito com criação de jurisprudências que devem ser obedecidas por todos, a justifica.
De mais a mais, ela tem o papel de dar um tom de legitimidade aos demais governantes que supostamente deveriam seguir uma norma igual para todos. Sua principal bandeira consiste em apresentar-se como defensora da isenção, neutralidade e justiça. Também se apresenta como a governança dos sábios, dos intelectuais, dos melhores. Para reforçar esse estereótipo, a governança jurídica possui um vocabulário próprio, praticamente ininteligível para a maioria da população. Essa prática é proposital, para estabelecer a distância e a dependência dos governados. Essa linguagem peculiar é denominada popularmente como ‘juridiquês’.
Por conseguinte, de modo geral, se assemelham a uma aristocracia e referendam a governança acadêmica-científica. Garantir a legalidade é seu objetivo. Todavia, omite-se que a posição assumida por qualquer magistrado é abarrotada de subjetivismo, de intencionalidade, de interesses, de parcialidade.
Essa governança não precisa do consentimento popular porque sequer passa pelo voto e, portanto, nem teoricamente necessita simular compromisso com os governados. A escolha desses governantes ocorre também por mera indicação da governança política, portanto, está abarrotada de interesses, embora, em alguns casos, os pares possam recomendar os seus concorrentes aos cargos. Em função dessa relação de designação política e da vida abastada que levam, com salários exorbitantemente superiores à média da população, essa governança tende a retroalimentar a legitimidade do capitalismo e de suas desigualdades, bem como justificar os governos, o Estado e seus políticos ‘padrinhos’. Fato que evidencia a separação dos poderes como um embuste, já que estão todos muito imbricados e interdependentes. Outro fenômeno que se tem acentuado bastante nas últimas décadas, é a chamada judicialização da política quando conflitos que seriam resolvidos em fóruns e instâncias políticas são resolvidos por juízes.
c) governados jurídicos: todos aqueles que devem obedecer às interpretações da lei exercida por esses homens de toga. Essa governança transpassa por todas as demais, retroalimentando-as e a si mesma, resultando em diferentes graus de sujeição dos governados.
Do ponto de vista das opressões sociais, essa é a governança da oficialidade e acadêmica-científica, e, como as demais, reforça as outras por apresentar em seu conjunto interpretações majoritariamente conservadoras das leis.[25]
A superação dessa governança passa necessariamente pelo fim do Estado e da crença segundo a qual alguém possa decidir o futuro de outros por meio da neutralidade.
Por fim, ao reconhecermos que somos governados por diferentes governanças e não apenas pela política, abrimos caminho para almejarmos a libertação das outras e para deixarmos de acreditar que uma vitória eleitoral possa nos levar à liberdade.
CONTRIBUIÇOES COM BASE NA FILOSOFIA POLÍTICA ANARQUISTA PARA A LIQUIDAÇÃO DE TODAS AS GOVERNANÇAS
Para combater as opressões em seu conjunto, existem alguns caminhos já trilhados pelas teorias políticas. As governanças sociais nunca foram objetos de preocupações para os liberais, justamente porque suas teorias amparam e justificam as desigualdades sociais como valores positivos e a liberdade defendida deve se restringir ao mercado. Não obstante, se almejasse soluções, estas seriam individualizadas e nunca poriam em questão qualquer crítica ao capitalismo. Isto é, cada grupo/classe/povo oprimido deveria buscar sua libertação individualmente, tendo como norte uma inclusão no regime capitalista de produção. Esse expediente é equivalente a um cachorro correndo atrás do rabo. Uma quimera inatingível.
Para os marxistas, que possuem uma grande preocupação com as desigualdades, a solução passaria necessariamente pelo Estado. Segundo seus diferentes ideólogos, seria necessário tomar o ‘poder’ por via revolucionária, para alguns; ou por meio de eleições, para outros; e depois, do alto do Estado, fazer as alterações necessárias, para acabar com as opressões, por meio de leis e decretos, todos consumados, em nome dos trabalhadores, é claro.
As ideologias fascistas e conservadores são as maiores estimuladoras dos preconceitos, discriminações, opressões e governanças, portanto, não trabalham para as suas superações, muito ao contrário, dedicam-se intensamente para suas sustentações.
Cabe, desse modo, à filosofia política anarquista uma reflexão original sobre essas questões e propor saídas coletivas, que passam necessariamente, pelo protagonismo dos próprios interessados. É nesse diapasão que podemos contribuir.
Pelo exposto, para destruir as governanças sociais e institucionais, é de fundamental importância liquidar com todas as formas de supostos nacionalismos. Nenhum ‘patriotismo’, nenhuma xenofobia, nenhum ufanismo deve servir para a luta dos oprimidos. Essas são práticas dos opressores ou de quem quer estabelecer opressão. Com base nessa assertiva, mesmo que um determinado grupo oprimido se sagrasse vitorioso, sustentado pelo nacionalismo e pela xenofobia, se consumaria uma nova opressão sobre o grupo/classe perdedor. O nacionalismo, portanto, é sinônimo de guerra. É justamente nessa armadilha opressora, baseada em um círculo vicioso, que os grupos governados não podem cair.
Toda e qualquer noção nacionalista, ufanista e xenofóbica atenta, peremptoriamente, contra três princípios caros ao anarquismo: a igualdade, a liberdade e a ajuda mútua. Sem eles, jamais chegaremos a uma sociedade sem opressão, sem discriminação. Os antagônicos ao nacionalismo, à xenofobia e ao ufanismo são o internacionalismo libertário, o amor ao próximo, a xenofilia. Significa estar de braços abertos para receber e respeitar o diferente, o outro, partindo da alteridade, isto é, entender o outro como ele é e a partir da sua cultura.
Em contraposição à premissa de que os fins justificam os meios, a filosofia política anarquista defende que os meios determinam os fins. De outro modo, se queremos uma sociedade sem qualquer forma de xenofobia no futuro, temos que começar a construí-la agora, por meio de nossos princípios, métodos e práticas. Temos que avançar para defesa em comum da humanidade, com respeito a todas as suas diferenças e possibilidades. Por isso, somos internacionalistas. Acreditamos que esses meios são os melhores para garantir a verdadeira liberdade, que só se concretiza na igualdade.
As nove governanças sociais e as cinco institucionais, todas opressivas em seu conjunto, significam, na prática, a materialização da supremacia ‘nacionalista’, do homem branco, heterossexual, rico, com formação universitária, praticante de religião judaica ou cristã, belamente produtivo, idólatra do Estado e suas leis, e preconceituoso com relação aos estrangeiros pobres. Com exceção destes, todas as demais pessoas da sociedade sofrem de uma ou mais opressões, que ao ser atingida, lhe imputa uma desigualdade com relação a outras. Problematizemos um pouco mais.
Indubitavelmente, uma mulher branca, rica, heterossexual, letrada, belamente produtiva, adepta da religião judaico-cristã, nacionalista, respeitadora e idólatra das leis estatais pode ser oprimida pelo patriarcado, simplesmente por ser mulher. Todavia, uma mulher negra, pobre, lésbica, praticante de qualquer outra religião que não as judaico-cristãs, ou mesmo ateia, analfabeta, deficiente ou idosa, defensora do fim do Estado e do capitalismo, portanto, revolucionária, e estrangeira, imigrante ilegal, estará, infinitamente, mais sujeita às opressões.
Assim, a supressão, apenas da opressão patriarcal, interessa, somente, a mulher do primeiro exemplo. Enquanto que para a outra, interessa a liquidação da opressão patriarcal e de todas as demais governanças em seu conjunto. Logo, é importante frisar que a luta antipatriarcal para libertação da mulher do segundo exemplo apresenta-se limitada, pois sua angústia é atravessada por outros despotismos.
Vejamos o caso da opressão racial. Indiscutivelmente, um homem, negro, heterossexual, com formação universitária, seguidor das religiões judaico-cristãs, belamente produtivo, idólatra do Estado e de seus governantes, portanto, ‘bom cidadão’, nativo e nacionalista, rico (proprietário) ou milionário, como disse Kom’boa (2015), pode ser oprimido pela supremacia branca.[26] Por outro lado, retomo o mesmo exemplo utilizado para o patriarcado: uma mulher, negra ou indígena, pobre, lésbica, obesa, idosa e deficiente, não seguidora das religiões judaico-cristãs, analfabeta, defensora do fim do Estado e do capitalismo, estrangeira, está infinitamente mais sujeita às governanças opressoras.
Com efeito, como no espelho da governança patriarcal, a supressão da opressão racial interessa ao primeiro exemplo, enquanto não resolve, nem emancipa a mulher do segundo. Assim, é importante entender que existem diferenças entre as opressões sofridas pelos negros. Seria uma estupidez achar que a supressão apenas da opressão racial resolveria, igualmente, os problemas dos dois exemplos.
Protótipos parecidos poderíamos elencar para explicitar que os LGBTQIA+, não adeptos das religiões judaico-cristãs, analfabetos, trabalhadores pobres, as pessoas fora dos padrões de estética produtiva e os estrangeiros sofrem por diferentes opressões.
Kom’boa Ervin (2015), com vistas a ratificar que não basta a luta antirracista para acabar com as opressões sofridas pelo povo negro, cita os exemplos dos movimentos de descolonização na África, depois dos quais, ‘líderes’ nacionalistas, que governaram os países, foram os mais conservadores e perseguiram os lutadores revolucionários, instalando ditaduras sangrentas contra os negros pobres. Tudo isso em aliança com governantes e capitalistas europeus. Situação parecida aconteceu mesmo quando revolucionários aliados, das frentes de libertação, assumiram o Estado, tornando-se partidos comunistas de Estado e novos ditadores sobre os governados. Em resumo, em países africanos, com a mais ampla maioria dos empresários e dos governantes negros, a maior parte dos governados, pobres e miseráveis, sofre de diversas opressões, enquanto aqueles, vivem em condições bastante abastadas. É necessário, portanto, o fim da opressão racial, mas somente isto não resolve o problema do negro governado em todos os sentidos da vida.
Poderíamos utilizar, também, os exemplos das governanças institucionais, como alguém que ocupa alto cargo no Estado, ou na magistratura, ou é detentor de um grande canal de TV, ou é milionário, proprietário de uma grande indústria, ou pertence ao alto escalão da governança penal; independente da sua cor da pele, se mulher, homossexual, ateia, idosa, feia, deficiente, com doutorado, estrangeira; será melhor tratada que outras, que não ocupam esses cargos.
Ainda assim, é muito comum que os alvos das governanças sintam, com mais veemência, apenas a opressão que lhe diz respeito e tendam a valorizá-la mais do que as demais. Isso é absolutamente normal. Talvez, inconscientemente, todos vão trabalhar dessa maneira. O problema consiste quando determinadas pessoas minimizam os problemas que outros sofrem a partir do um olhar externo. Este sim, constitui-se como um problema sério que faz parte de um princípio individual, egoísta, típico do pensamento liberal, despreocupado com o bem-estar do outro, que não ajudará nem na luta em comum contra todas as opressões, tampouco na luta coletiva para o fim exclusivo da sua opressão identitária.
É exatamente essa quimera que buscamos adversar com o reconhecimento das nove governanças opressivas sociais e as cinco governanças institucionais existentes na sociedade, que precisam ser combatidas em seu conjunto. Tomamos essa atitude simplesmente porque não podemos aqui dizer qual é a pior, mais cruel, pois seria um desrespeito com a luta de afinidade do outro. Não existe hierarquia de opressão ou grau de opressão. Existe opressão, e só o oprimido sabe o quanto dói sofrer em função de algumas características que possua ou de posses que não tenha. Quem se atreve a desmerecer a tirania padecida pelo outro, apontando exclusivamente a sua como importante, simplesmente contribui para uma nova opressão. Em outras palavras, aquele que deseja, apenas, o fim da governança que lhe ataca, mostra seu grau de egoísmo, individualismo, ligado a uma compreensão conservadora de sociedade, que obsta reflexões mais amplas para uma transformação social revolucionária.
É chegada a hora de se buscar vencer todas as opressões. Só assim, conseguiremos a verdadeira emancipação social. Está mais do que provado que a luta coletiva é mais forte do que a individual. O que podemos propor é a unidade de todas as lutas, contra todas as governanças e suas instituições, como única forma de vitória.
Além disso, o conceito de revolução social, emblemático do pensamento anarquista, deve incluir explicitamente no seu interior e como propósito fundamental a luta pelo fim de todas as governanças e suas opressões sociais e institucionais, liquidando, por conseguinte, o capitalismo, o Estado e toda forma de autoridade.
Do ponto de vista simbólico, uma perspectiva libertária deve trabalhar para emancipar a mulher negra/indígena, lésbica, analfabeta, revolucionária, deficiente, não seguidora das religiões judaico-cristã, não cidadã, trabalhadora, pobre e estrangeira, de todas as governanças sociais e institucionais. Ao trabalhar para emancipá-la, estaremos colaborando para a libertação de todas as outras opressões em seu conjunto. Essa será a luta pela verdadeira emancipação social.
Antes de terminamos, cabem mais dois exemplos.
O direito ao voto pode servir como um grande arquétipo da necessidade de uma luta comum para o fim de todas as opressões. Nos regimes chamados, por antífrase, de democráticos, durante o século XIX, e por boa parte do século XX, em todos os países do ocidente, apenas homens, da raça branca, heterossexuais, proprietários, portanto, ricos, coincidentemente adeptos das religiões judaico-cristãs, nativos nacionais e reconhecidos pela governança jurídica, como cumpridores de seus deveres, votavam. Assim, as mulheres, negros e indígenas, assumidamente homossexuais, os brancos não proprietários e pobres, os ateus, adeptos de outras religiões, não classificados e em dia com o Estado, analfabetos, estrangeiros, não tinham o direito ao voto.
Percebamos, assim, que o direito ao sufrágio que escolheria a governança política estava pautado exatamente nas nove opressões que constatamos. Atualmente, em praticamente todos os países, o direito político está facultado àqueles antes discriminados e impedidos[27], todavia, as opressões continuam. Isso mostra o quanto o direito ao voto não cumpriu um papel transformador, em função das diferentes formas de governanças existentes, para além da estritamente política.
Podemos concluir, que as aludidas governanças simbolizam uma relação direta entre autoridade e obediência; em suma, entre governantes e governados. A autoridade representa todas as formas de governanças sociais e institucionais, que impõem no seu conjunto, uma supremacia do homem, branco, proprietário, rico, heterossexual, ‘bom cidadão’, seguidor de uma religião judaico-cristã, com formação acadêmica superior, esteticamente produtivo, sendo, ao mesmo tempo, um governante institucional de uma ou mais governanças (econômica, política, penal, jurídica, sociocultural).
A obediência é a ordem. É o que se espera dos governados e está diretamente ligado, no nosso inconsciente, às raças não brancas, às mulheres, aos pobres, enfim, aos alvos das governanças sociais e institucionais, em uma palavra, governados. Cabe a essas pessoas, nesse modelo societal, obedecer e buscar copiar a vida do dominador.
É importante dizer que as diferentes formas de governanças institucionais e sociais possuem uma relação de interdependência e interpenetração muito forte, muitas vezes se confundindo, mas em outras, deixando nítido suas peculiaridades. É claro que alguns grupos de pessoas vão querer reduzir todas as opressões sociais a uma única, com vistas a potencializar sua luta, mas isso mostrará também seu grau de sectarismo e de desconhecimento político, histórico e social. Simultaneamente, poderemos perceber que ao fazer isso um oprimido possui potencial profundo para virar um opressor, aguardando apenas a oportunidade. Também, podem ser identificadas outras opressões que não foram relatadas aqui.[28] Enfim, essa pesquisa não se propõe definitiva, mas apenas busca apresentar uma interpretação crítica das governanças institucionais e sociais, com suas respectivas opressões, como forma de ajudar na libertação das mesmas.
É preciso destacar que há resistência por parte de muitos governados em todos esses campos. Vários grupos identitários se organizam para ação coletiva contra os opressores. Indubitavelmente, observamos produção de cultura alternativa, autogestionária, crítica, e, até anarquista. Portanto, alguns não são governados em todos os sentidos da vida, embora estes sejam uma ínfima minoria na sociedade. Existe, ainda, contestação das governanças política, econômica, sociocultural, jurídica e penal, mesmo no interior de cada uma delas, mas raramente encontrada.
A utilização dessas dicotomias deve deixar claro para o interlocutor que a verdadeira liberdade só é possível na autogestão em todos os sentidos da vida: econômica, política, sociocultural e com o abolicionismo penal.
Das cinco governanças, a única que passa pelo crivo do voto, quando se vive em regime supostamente democrático, é a política. As outras estão estabelecidas sem qualquer necessidade de prestação de contas aos governados, sendo, portanto, mais naturalizadas e, talvez, por isso, menos contestadas. Das governanças sociais, nenhuma passa pelo crivo do voto. Por isso, que o sufrágio não pode significar a libertação de nenhum grupo oprimido.
Os exemplos trazidos por Kom’boa Ervin (2015), ex-militante do Partido dos Panteras Negras e militante negro, segundo o qual a estratégia da esquerda oficial e partidária é retirar/desviar a consciência de classe dos trabalhadores para estimular estritamente a de raça, corrobora para a manutenção do establishment e das nossas teses. Ele ainda afirma que os diversos representantes negros nos aparelhos estatais representativos ou por indicação política não alteraram a situação degradante da maioria das black people. Vale ler a longa citação:
Alguns – geralmente a acomodada classe média negra formada por profissionais, políticos ou empresários que participaram do movimento dos direitos civis em 1960 por poder ou destaque – vão dizer que não há mais nenhuma necessidade de lutar nas ruas pela liberdade negra durante a década de 1990. Eles dizem que já ‘chegamos lá’ e agora estamos ‘quase livres’. Eles dizem que a nossa única luta agora é para ‘integrar o capital’, ou ganhar riqueza para si e para os membros de sua classe social, embora eles falem da boca para fora sobre ‘empoderar os pobres’. Olha, dizem eles, nós podemos votar, nossos rostos negros estão por toda a TV em comerciais e comédias de costume, existem centenas de milionários negros, e temos representantes políticos nos corredores do Congresso e em repartições do Estado em todo o país. Na verdade, dizem eles, existem atualmente mais de 7.000 autoridades negras eleitas, várias das quais governam as maiores cidades do país, e há até mesmo um governador de um estado do sul, que é um africano-americano. (…) O fato é que estamos em uma situação tão ruim ou ainda pior, economicamente e politicamente, como quando o movimento dos direitos civis começou na década de 1950. Um em cada quatro homens está na prisão, em liberdade vigiada, liberdade condicional ou detido; pelo menos um terço ou mais das unidades familiares negras são famílias monoparentais hoje atoladas na pobreza; o desemprego oscila entre 18-25% para comunidade negra; a economia das drogas é o empregador número um da juventude negra…[29]
Por fim, o pensamento anarquista não pode deixar de levar em conta as múltiplas formas de governanças sociais e institucionais. Assim, qualquer luta emancipatória só será completa com a supressão dessas governanças, ou, nos termos de Kropotkin (2005), com a liquidação “da ordem”[30].
Terminamos com a esperança da letra da música de Luiz Carlos da Vila:
Por Um Dia De Graça
Um dia, meus olhos ainda hão de ver
Na luz do olhar do amanhecer
Sorrir o dia de graça
Poesias, brindando essa manhã feliz
Do mal cortado na raiz
Do jeito que o mestre sonhava
O não chorar
E o não sofrer se alastrando
No céu da vida, o amor brilhando
A paz reinando em santa paz
Em cada palma de mão, cada palmo de chão
Semente de felicidade
O fim de toda a opressão, o cantar com emoção
Raiou a liberdade
Chegou o áureo tempo de justiça
Ao esplendor, do preservar a natureza
Respeito a todos os artistas
A porta aberta ao irmão
De qualquer chão, de qualquer raça
O povo todo em louvação
Por esse dia de graça
[1] Estamos desenvolvendo um livro sobre o assunto, no qual discutimos a construção de um paradigma anarquista de análise, comparando com outros paradigmas. Aqui segue apenas a apresentação da discussão sobre alguns conceitos instituídos a partir da teoria anarquista que guiarão esse livro sobre as histórias políticas de Brasil e Venezuela. Agradeço aos alunos do OTAL que discutiram e sugeriram pontos para esse tema. Também sou grato ao grupo de estudos Maria Lacerda de Moura pelos comentários por ocasião da minha apresentação na UERJ. Como de praxe, tudo que segue escrito nessas páginas é de minha inteira responsabilidade. Este é o capítulo 1 do livro: De Moraes, Wallace S. (2018) Governados por quem? Diferentes plutocracias nas histórias políticas de Brasil e Venezuela. Curitiba: Prismas.
[2] Prof. do Departamento de Ciência Política e dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF) e de História Comparada (PPGHC) todos da UFRJ.
[3] LGBTQIA+ significa: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers, Intersexuais e Assexuais.
[4] Sobre a questão da divisão social do trabalho existem algumas controvérsias no pensamento clássico anarquista. Então, optamos por seguir a quadro teórico proposta por Kropotkin [1892] (2003). Também poderíamos citar aqui Mészáros (2003) por compartilhar dessa interpretação.
[5] Darwinismo social foi uma tentativa de se aplicar a teoria desenvolvida por Charles Darwin para o desenvolvimento das espécies no suposto desenvolvimento humano. Descreve o uso dos conceitos de luta pela existência e sobrevivência daqueles que seriam os mais aptos, para justificar as desigualdades sociais. Esse conceito motivou as ideias de eugenia e racismo.
[6] Ver Graeber (2015).
[7] Ver Mészáros (2003).
[8] Ver R. Michels (1982).
[9] Em versão preliminar desse livro discutida no âmbito do grupo de pesquisa OTAL da UFRJ, utilizei os conceitos de ditadura civil-militar e militar-civil quando o meu orientando Flávio Moraes alertou para o fato da pouca precisão dos conceitos, sobretudo por afirmar que a ditadura era também civil. Obviamente, que nem todos os civis, tampouco sua maioria apoiava a ditadura ou se reconhecia como parte dela. Então, ela não podia ser civil. Obrigado, Flávio, pelo alerta. Por consequência tive que procurar um conceito substituto e que poderia melhor representar a realidade das governanças políticas na América Latina. Esse conceito, como exposto anteriormente, atende pelo nome de plutocracia, governo do poder econômico, em favor da riqueza de alguns privilegiados, exploradores dos governados.
[10] Normalmente, vigora uma unidade entre todos os governantes na defesa da plutocracia. Porém, vez ou outra, ocorre disputa entre eles que ao longo da história resultaram em golpes de Estado, golpes institucionais, quarteladas. Todavia, o comum é o acordo na manutenção do status quo, que significa a ampla subordinação dos governados e a conservação do capitalismo racista latino-americano em favor dos donos da riqueza, do capital.
[11] Poderíamos incluir nessa assertiva outros modos de produção como o feudalismo e o escravismo.
[12] Aqui segue apenas um extrato das governanças/opressões sociais. Em futuro livro as abordaremos com mais detalhes.
[13] Ver: www.terra.com.br/noticias/brasil/homicidios-no-brasil-714-das-vitimas-sao-negras,6e8009c39f0f5410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html
[15] Essa opressão é muito bem desenvolvida por Suane Soares (2017), orientada por Maria Clara Dias, que, inclusive, nos inspirou a escrever parte desse capítulo ao tratarmos das opressões sociais.
[16] Estes dados estão no relatório da Transgender Europe, de 2008 e 2014. Ver: http://tgeu.org/tmm-idahot-update-2015.
[17] Sobre a efetivação de direitos humanos ou direitos reprodutivos para determinados grupos oprimidos, ver excelente pesquisa de Ventura (2009).
[18] Ver Kramer (2016).
[19] Sobre o cristianismo primitivo, ver: Engels e Luxemburgo (2011).
[20] Capacitismo é o conceito que visa chamar a atenção para a opressão sobre os deficientes existentes na sociedade. Procuramos incluí-la em um escopo maior apresentado acima. Camila Jourdan me ajudou nesse conceito. Obrigado!
[21] É importante dizer que tratamos o conceito de belo aqui meramente por aquilo que é determinado pelos governantes socioculturais e seus oligopólios de comunicação de massa, dentro do contexto da indústria cultural. É óbvio que a beleza é relativa.
[22] Ver Castells (2017).
[23] Ceceña (2001). Agradeço à pesquisadora Fontel, do OTAL, pelo envio dessa citação.
[24] Entre 2006 e 2016 a população carcerária brasileira dobrou. Fonte: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas
[25] Os governantes jurídicos têm interferido bastante na governança política, sobretudo desde a era petista. As denúncias do ‘Mensalão’, em 2005, a operação ‘Lava Jato’, o papel assumido pelo TSE no julgamento e absolvição da chapa Dilma Rousseff/Michel Temer, ignorando todas as provas e evidências de irregularidades na campanha eleitoral, demonstram o papel político e decisivo, em alguma medida, autônomo e controverso dessa governança, porém, indubitavelmente, categórico e importante. A crescente autonomia do Ministério Público e o protagonismo assumido pelo STF são fatores cruciais dessa governança.
[26] Esse homem negro é um verdadeiro herói por conseguir espaço nessa sociedade racista. Vários deles conseguiram esse espaço. O maior exemplo disso foi o ex-presidente dos EUA Barack Obama.
[27] Com exceção dos estrangeiros.
[28] Por exemplo, Dias (2017) relata, com propriedade, sobre as opressões que os animais sofrem no planeta. Fato que estimula uma vida vegana como forma de respeito às outras espécies.
[29] Quando Kom’boa Ervin (2015) escreveu esse texto, Barack Obama ainda não havia chegado à presidência dos EUA.
[30] A ideia de “ordem” é amplamente desenvolvida e criticada por Kropotkin (2005) no capítulo 10 do livro Palavras de um revoltado, que inclusive apresenta uma justificativa para utilização do termo anarquia.