“MODERNIDADE: RACISMO, CAPITALISMO E ESTADOLATRIA”

“MODERNIDADE: RACISMO, CAPITALISMO E ESTADOLATRIA”

Aula dia 03 de setembro[1]

Autor: Wallace de Moraes  (IFCS/UFRJ)

Edição/transcrição: Cello Latini

 

Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Hume, Tocqueville, Montesquieu, Burke, Hegel, Stuart Mill, Adam Smith, Spinoza, Hamilton, Madison, Weber… São os considerados clássicos do pensamento moderno. Mas qual o contexto em que eles escrevem? É o contexto do colonialismo. Esses autores estão escrevendo entre o final do século XV até o XX, quando o colonialismo está em pleno vigor. E aí já tem o princípio racista, da desigualdade, da discriminação, da violência contra o outro. E agora é um novo racismo, um racismo de corte, baseado amplamente na ideia da cor da pele, porque até então não tinha isso. Bom, na Europa vigora todo um regime de servidão. A passagem do regime de servidão medieval, feudal, para um princípio moderno. Esse regime de vassalagem, que depois passa para o modelo capitalista de produção, tira uma exclusão e piora para outra. O trabalhador europeu, que antes trabalhava em sua terra – parte do que produzia era para ele, existia certa liberdade, e havia muitas terras comuns na Europa, em que as pessoas trabalhavam sem necessidade de prestar contas para um senhor –, passa para o capitalismo – o que é visto pela literatura liberal e pela literatura marxista como algo positivo. A única literatura, que parte dos Europeus, e que criticava o capitalismo foi a dos anarquistas, e Kropotkin é o melhor deles.

            Na América e na África se estabelece um regime de escravização de corpos negros e indígenas. Uma crueldade. Todos os europeus sabiam desse regime de escravidão de outros povos. Qual dos autores aqui mencionados criticou a escravidão? Deixe-me inverter a pergunta. Quais deles justificaram a escravidão, legitimaram a escravidão? Alguns eram proprietários de escravos.

            Além disso, temos a consolidação do patriarcado. Como já falei, a queima de mulheres insubmissas, consideradas bruxas, e a perseguição aos que fogem dos padrões heteronormativos. E aí estão os princípios igrejista, militarista, patriarcal, capitalista: modernos. São todos princípios da modernidade. Ademais – e isso é que eu quero contribuir com vocês –, não só há as ideias de patriarcado, capitalismo, exploração e racismo: há o princípio também da Estadolatria. Todos os autores modernos justificaram a existência do Estado. Para Hegel, o Estado era a expressão máxima da razão. Não era possível pensar para além da formação estatal, diziam os pensadores modernos. Eles discutiam sobre diferentes formas de organização do Estado, mas jamais sobre sua negação. Então, pergunto para você que é negro, indígena, para você que é descendente de negros e indígenas: qual foi o papel do Estado para nossos ancestrais? Qual foi o papel do Estado? Foi o Estado que nos escravizou, que nos matou, que nos torturou, nos açoitou, nos colocou no pau de arara. Portanto, na literatura emancipatória, negra e indígena, em consideração aos nossos ancestrais, jamais pode ser estadolátrica. É aqui que a literatura anarquista colabora demais para pensar a raça. Entendem por que associo uma coisa com a outra? Por que eu entendo a filosofia anarquista como algo possível e fundamental para mudarmos?

            Podemos buscar tanto Maquiavel como Hobbes, segundo os quais os homens estão em luta de todos contra todos, o homem é o lobo o homem, existe uma guerra constante na sociedade se não houver a presença do Estado. É o Estado que vai garantir a longevidade, a vida, a propriedade, o bem dessas pessoas. Mas faço uma simples pergunta? Em quem Hobbes está pensando? Esse livro dele chamado “O Leviatã” foi escrito em 1651, século XVII. Já havia mais de 100 anos de escravidão na América. Esse Estado estaria em favor de negros, indígenas e trabalhadores pobres europeus? Não.

            Na continuidade, os homens deixam-se levar por suas paixões malévolas, que devem ser controladas (Maquiavel e Hobbes). Vejam, voltando aqui um pouquinho, quando eu dava aula sobre Hobbes: a natureza do homem é má, o homem é mau, egoísta. Então, se não tiver algo que controle os anseios do homem, eles se matarão uns ao outros. Essa instituição, o Estado, o Leviatã, é toda poderosa. Você deve abrir mão de seu interesse, da sua liberdade, em prol do Estado, que, segundo ele, vai garantir sua vida. Mas imaginemos que Hobbes tivesse que conceber os seres humanos como bons, que fossem cooperativos, que amassem a liberdade, que vivessem em comum acordo com seus iguais. Por que não? Se ele fizesse isso, ele não poderia chegar à conclusão do Estado como imprescindível para a sociedade. Aqui está o princípio máximo da Estadolatria, do amor pelo Estado, um Estado autoritário, coercitivo, militarista. O Estado pode ser mínimo, mas o militarismo nunca deixa de existir, é fundamental para o Estado, significa a morte, a prisão, o assassínio do outro, do diferente, daquele que atenta contra os interesses dos governantes, dos proprietários, dos poderosos.

            Vamos avançar. Hume entende a avareza como paixão universal que age em todos os tempos, em todos os lugares e sobre todas as pessoas. Locke, Adam Smith, David Ricardo, vários outros disseram essa mesma sentença com outras palavras. Todos pensam nesse princípio, de que a avareza é inerente à humanidade. E aí tem o livro do David Kopenawa, indígena yanomami, que faz uma profunda crítica àquilo que ele chama de “povo da mercadoria”, que é amante da mercadoria, e mercadoria, em yanomami, é chamada de “matihi”, que não é algo positivo.

Referências

BURKE, E. Reflections on the Revolution in France. New York: The library of liberal arts, 1955.

HEGEL, G. W. F. 1993 (1818/1820). Fundamentos de la filosofía del derecho. Madrid: Libertarias/Prodhufi.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. (Os Pensadores). Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3ª ed.. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

HUME, David. Tratado da natureza humana. São Paulo: Unesp, 2001.

KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.

KOPENAWA, Davi & ALBERT; Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.

KRENAK, Ailton (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras.

KROPOTKIN, P. (2005), Palavras de um revoltado. São Paulo: editora Imaginário.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo(Os Pensadores). Tradução de AnoarAiex e E. Jacy Monteiro. 3ª ed.. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo, Abril (coleção os pensadores), 1979.

MILL, J. S. Considerations on Representative Government. New york: the Bobbs-Merril Company, 1958.

MONTESQUIEU. O Espírito das leis. São Paulo: Abril (coleção Os Pensadores), 1973.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social (Os Pensadores). Tradução de Lourdes Santos Machado. 3ª ed.. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

_______________. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (Os Pensadores). Tradução de Lourdes Santos Machado. 3ª ed.. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

WEBER, M. Ciência E Política: Duas Vocações. São Paulo: Cultrix, 1972.

__________. Os Três tipos puros de dominação legítimaIn “Max Weber”. Gabriel Cohn (org.). São Paulo: Ática, 1991. p. 128-141.

 



[1] Edição/transcrição de Cello Latini do vídeo/aula de Wallace de Moraes no canal do CPDEL do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=r1Tj4AA3bws

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