2013: Lutas populares na América Latina

2013: ANO DE LUTAS POPULARES NA AMÉRICA LATINA

Wallace Moraes, Anízio Lobo, Lucas Bártolo[1]

Obs: este artigo foi publicado originalmente na revista “Caros Amigos” n. 201 de dezembro de 2013.

As confluências entre a história dos países latino-americanos persistehá séculos e mantém-se até os dias atuais. Como muito bem observou Eduardo Galeano (in “As veias abertas da América Latina”), o continente foi pilhado pelos exploradores em mais de 500 anos de assassinatos, apropriação indébita das terras indígenas, escravidão, humilhação, estupros e exploração.

Em contraposição, foram registrados inúmeros casos de insurgência dos governados. Negros escravos formaram quilombos livres; operários animaram muitas greves; a luta campesina e indígena marcou vários países. Enfim, são múltiplos os exemplos.

A experiência das manifestações ocorridas no ano de 2013 no Brasil nos remete a uma inquietante questão: existiram protestos na América Latina similares aos nossos? Tanto a ação dos manifestantes, quanto a repressão governamental estiveram presentes de maneira similar? Peguemos os exemplos de Colômbia,Chile e Méxicopara análise.

2013 NA COLÔMBIA

O ano de 2013 na Colômbia marca o auge de um período iniciado em 2008 com as enormes mobilizações indígenas e camponesas. Desde o mês de junho deste ano, a luta dos trabalhadores agrários tem reunido dezenas de milhares de camponeses contra as políticas governamentais. A ação direta foi prática recorrente dos revoltosos. Todos da linha de frente dos enfrentamentos com as forças policias usavam máscaras ou camisas nos rostos para não serem identificados.

A resposta do governo ao apelo popular por melhores condições de trabalho, demarcação de terras etcveio através dos ataques militares do exército, da polícia e do esquadrão anti-distúrbios, resultando no assassinato de pelo menos quatro camponeses. O presidente Juan Manuel Santos,para justificar a repressão,afirmou que os manifestantes eram guerrilheiros e terroristas. A grande mídia chamou os campesinos insurgentes de “vândalos”. O aumento da repressão, porém, não freou as mobilizações; ao contrário, parece tê-las impulsionado. No mês seguinte, milhares de pessoas, entre membros de comunidades afro, indígenas e trabalhadores das pequenas, médias e artesanais mineradoras do departamento de Chacó foram às ruas. Do mesmo modo, essas manifestações foram fortemente reprimidas.

Em agosto, deu-se início à Paralisação Agrária Nacional e Popular, liderada pelos movimentos camponeses e com a adesão de diversos segmentos da classe trabalhadora colombiana, como os profissionais da saúde, educação, mineração e transporte, além das organizações sindicais. Trezentos e trinta mil professores da rede pública de ensino entraram em greve pelo não cumprimento de direitos trabalhistas. Outros segmentos sociais igualmente estão nas ruas, como o movimento LGBTI e o movimento feminista, lutando, por exemplo, pela liberação da união de casais do mesmo sexo e contra a violência às mulheres. A repressão aos protestos se reafirmou enquanto primeira resposta do Estado aos manifestantes, tomando proporções de guerra. Helicópteros, tanques, e fuzileiros, além de incineração de moradias e mantimentos, foram utilizados pelo governo. Em Bogotá, as autoridades policiais estão divulgando retratos falados dos manifestantes que cometem atos de “vandalismo” durante a resistência à repressão policial.

A opção do povo colombiano pela ação direta nas ruas indica o fracasso, ou ao menos a ineficiência, das vias representativas eleitorais. A não institucionalização da luta popular, ou seja, sua realização direta e combativa, faz com que o Estado, uma vez contestado, responda de forma cada vez mais repressiva e autoritária. Os casos de violação aos direitos humanos são rotineiramente denunciados pelas redes sociais, com imagens e relatos dos crimes praticados pelas forças repressivas do Estado.

2013 NO CHILE

Em junho de 2013, no Chile, foram realizadas enormes manifestações populares. Essa onda de protestos acometeu cerca de dez cidades chilenas, além da capital, na qual mais de 100 mil estudantes e trabalhadores tomaram as ruas por diversas demandas ignoradas pelo Estado, como direitos sociais, educação,emprego e, em menorparte, contra o capitalismo.

Outra manifestação de massa no Chile ocorreu no dia 11 de setembro de 2013, exatamente no aniversário do golpe militar que depôs Allende em 1973. Mais de 60 mil pessoas foram às ruas exigindo justiça e foram igualmente reprimidas pelas forças policiais com canhões d’água e bombas de gás lacrimogêneo. Novamente aconteceu o enfrentamento com detidos e feridos. O uso de máscaras foi muito comum em todos os protestos.

As manifestações foram fortemente reprimidas e houve quebra-quebra: mais de 150 manifestantes, entre trabalhadores e estudantes, foram detidos. Para melhor enquadrar os insurgentes, o governo recorreu aos dispositivos legais do Estado. Através da Lei Antiterrorismo, que pretende instituir mais rigorosos parâmetros de repressão da polícia em manifestações públicas onde haja ocupação de prédios estatais, obstrução de vias, agressão contra agentes públicos e o incentivo ao que o Estado chama de “desordem”. Em resumo, a lei antiterrorismo visa coibir a ação direta.

 

2013 NO MÉXICO

O ano de 2013 no México foi marcado por uma grande greve dos professores com amplo apoio estudantil. A ação direta foi uma das principais características dessa greve: ocupações de centros educacionais, ofensivas a prédios estatais e resistência ao ataque das forças de repressão. O uso das máscaras, que já é comum no território de Chiapas, foi amplamente utilizada pelos manifestantes nos confrontos com a polícia. Por outro lado, a truculência dos agentes do Estado contra os manifestantes foi muito intensa. Como a grande mídia no México não mostrava os atos de violência policial,foi criada uma grande rede de mídia independente para denunciar as atrocidades através das redes sociais.

A partir do dia 18 de agosto, professores e estudantes começaram um acampamento na praça Zócalo em sinal de protesto contra a proposta de reforma do sistema educacional do governo. Nesse dia,mais de 50 mil pessoas participaram do ato.Antes de completar um mês de ocupação, o governo resolveu expulsar os professores, que resistiram bravamente, com o seguinte saldo: mais de 200 manifestantes feridos, alguns em casos graves, e 30 detidos.

O ano de 2013 deve entrar para história mexicana também pela marca da insurgência popular através do levantamento em armas. Até o momento, podemos identificar o surgimento de grupos de autodefesa contra a subordinação ao narcotráfico e aos agentes do Estado em mais de 40 municípios, distribuídos em 12 estados. Olhando o mapa mexicano percebemos que esses focos de milícias populares se concentram nos estados dos extremos: sul e norte, justamente onde nasceram os movimentos insurgentes da Revolução Mexicana, no início do Século XX,liderados, respectivamente, por Emiliano Zapata e Pancho Villa.

 

Conclusão:

Para efeito de conclusão, pudemos perceber que as manifestações tiveram em seu conjunto um caráter insurgente, negando a mera expectativa de que os representantes legais defendam seus interesses. Os governados foram para as ruas. Nesse sentido, elas se mostraram independentes e em grande medida contra a política via representação. Em acordo com esse diapasãoos movimentos escolheram a ação direta. Os enfrentamentos com as forças repressivas do Estado foram seus sinais mais significativos.

Na Colômbia, enquanto as FARCs fazem um acordo de paz com o governo para abandonar as armas e criar um partido político, depois de décadas de guerrilha, indígenas e campesinos fazem enormes protestos insurrecionais com enfrentamentos com as forças do Estado, abrindo mão de qualquer representação política.

O uso de máscaras pelos manifestantes nos diferentes países também é uma questão importante para se pensar. Do ponto de vista do governado se trata de uma forma de proteção contra a lei que o criminaliza.

As greves na educação tanto no México, quanto no Chile, tiveram características muito próximas. Em ambos os casos os governos fizeram alterações nos planos de carreira e os professores reagiram com ocupações de prédios estatais, ruas e praças públicas.

A polícia atuou de maneira semelhante, com todo o aparato repressivo para contenção das manifestações: balas de borracha, bombas de gás lacrimogênio etc. Os resultadostambém não foram diferentes: vários feridos e detidos em praticamente todos os protestos.

O papel exercido pelos grandes monopólios de comunicação também foi muito parecido. De uma maneira geral, criticaram e ajudaram a criminalizar a ação direta em todos os lugares. Chama bastante atenção que os contestadores da ordem pública tenham sido chamados pelo mesmo nome nos diferentes países: “vândalos”. Por esses motivos, a grande mídia é altamente criticada, por vezes, rechaçadas das manifestações. O uso das redes sociais foi outra característica comum dos protestos rebeldesde 2013, colaborando para a construção de uma mídia alternativa e independente.

Em todos esses países ocorre o endurecimento das leis penais criadas para a criminalização dos novos tipos de protestos, chamadas por vezes como lei anti-terrorista. Aqui, no Brasil, até a lei de segurança nacional foi aplicada.

Aconteceu, também, nesse ano, algo, no mínimo, inusitado, pois tanto no Brasil, quanto na Colômbia,os jogadores de futebol fizeram protestos. Trata-se de uma categoria profissional sem histórico claro de luta, por diversos motivos, mas que embalada pelas manifestações populares também se rebelaram.

Concluindo, o ano de 2013,na América Latina,traz à tona a revolta popular, a ação direta, o enfrentamento com as forças do Estado, como práticas políticas da população descontente com os governos de diferentes cores ideológicas que privilegiaram os interesses do grande capital em detrimento dos governados em geral. Desde o levante zapatista em Chiapas, no México, em 1994, vem surgindo lutas autônomas na região independentes da política institucional viciada. O exemplo zapatista, enquanto organização popular, insurrecional, que nega a participação eleitoral e institucional, e propõe a ação direta, tem ganhado força. Trata-se de uma nova forma de fazer política pelos governados com forte componente de negação do Estado.Uma das outras novidades desses movimentos é que nenhum partido político ou central sindical detém a direção, muito ao contrário, inclusive, nesses países é comum vê-los criticando a ação direta dos rebeldes, corroborando com os discursos dos governos.

Por fim, a década de 1910 foi mágica para o mundo contendo experimentações há muito almejadas por aquelas gerações e as anteriores. Foi naquela década que aconteceram as Revoluções Russa e Mexicana, levantes na Hungria, na Alemanha, as greves gerais no Brasil, Argentina, Colômbia. Parecia ali germinar um outro mundo. Infelizmente, o sonho socialista descambou em ditadura. Será que o ano de 2013 está gestando uma nova forma de fazer política que pode transformar e criar um novo mundo? Se isso for verdade, temos que trabalhar para que ele seja horizontal, sem hierarquias, preconceitos e seja dotado de plena igualdade, liberdade e amor. Todo poder aos governados para que não sejam mais chamados por essa condição!



[1] Pesquisadores do OTAL (Observatório do Trabalho na América Latina) do Departamento de Ciência Política da UFRJ.

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