LIVRO: “2013 – Revolta dos Governados – ou para quem esteve presente – Revolta do Vinagre” (Introdução)

INTRODUÇÃO

O período entre junho de 2013 e julho de 2014 foi um dos mais importantes da biografia política e social do Brasil, trazendo muitas novidades no cenário das ações coletivas dos governados. Nesse intervalo de tempo, presenciamos vários acontecimentos que ratificam essa premissa: 1) os maiores protestos da história do país (junho de 2013), caracterizados por enfrentamentos entre manifestantes e policiais em praticamente todas as capitais, em especial no Rio de Janeiro, de onde fizemos nossa observação participante; 2) algumas categorias impulsionaram lutas e greves, a despeito da orientação das direções sindicais em contrário, como garis, rodoviários, caminhoneiros e professores; 3) também tivemos os “rolezinhos” de negros, pobres, moradores de favelas e periferias em templos do consumo como shopping centers para escancarar o, por vezes, dissimulado apartheid social que os discriminam; 4) tivemos ainda a luta pela liberdade sexual com as “marchas das vadias” e a luta LGBTQIA+ no meio desse cenário; 5) em função do péssimo serviço dos transportes e da forte repressão policial discriminatória, populares fizeram barricadas, mesmo depois de junho, em seus bairros, favelas, e quebraram trens, ônibus, barcas e metrôs; 6) foram criados vários coletivos de segmentos profissionais importantes para dar apoio nas manifestações como: enfermeiros, advogados, músicos, projetistas e até hackers, cada um com seu papel específico; 7) até os jogadores da elite do futebol brasileiro cruzaram os braços e protestaram antes, durante e depois das partidas;[1] 8) podemos incluir as ocupações de espaços que deveriam ser públicos como câmaras de vereadores, assembleias legislativas, secretarias de governos e, inclusive, escolas e universidades que aconteceram depois de 2013, mas com seu espírito; 9) vimos um novo modelo de manifestações ser gestado, mais horizontal, negando as autoridades, seus partidos políticos, sindicatos, seus palanques, suas campanhas eleitorais ad infinitum e seus carros de som; 10) testemunhamos o surgimento de indivíduos e coletivos com máscaras, escudos e roupas pretas com os símbolos do anarquismo enfrentarem as forças policiais na defesa dos demais manifestantes e no ataque aos símbolos do capitalismo e do Estado.

Vimos, enfim, os oligopólios de comunicação de massa, a polícia, o Estado, todos os governantes, partidos políticos, sindicatos, os bancos, os preços dos transportes públicos e os gastos com a Copa do Mundo, enfim, as autoridades, as hierarquias e a ordem, serem amplamente contestados/rechaçados. Um ano sui generis. Deve entrar para a história, mas sobretudo deve ter preservada a sua memória com uma análise problematizadora. Esse é o nosso objetivo.

As revoltas insurgentes do inverno-primavera de 2013, cujo paroxismo aconteceu nas manifestações da semana de 17 a 23 de junho, já podem ser computadas como as maiores da história do Brasil. Nada se iguala em número de pessoas nas ruas, ainda que se considerem os levantes populares e suas diversas revoltas isoladas. Pari passu, em nenhum momento houve tantos enfrentamentos simultâneos com a polícia, praticamente em todas as capitais no país e em grandes cidades na mesma semana, evidenciando o teor da Revolta do Vinagre, na qual entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2013 ocorreram: 691 protestos; 15 manifestações com mais de 50 mil pessoas; 16 delas com mais de 10 feridos; 10 usos de armas de fogo; 8 mortes; 837 feridos; 2608 pessoas detidas; 117 jornalistas agredidos ou feridos; 10 jornalistas detidos.[2]

O estopim dessa Revolta aconteceu em função da luta contra o aumento das passagens de ônibus e foi impulsionada pelo Movimento Passe Livre.

Naquela semana, em Brasília, capital federal, aproximadamente, 60 mil pessoas indignadas, ocuparam o Congresso Nacional. Em São Paulo, maior polo econômico da República, 100 mil pessoas ocuparam praças e tentaram quebrar a prefeitura. O mesmo movimento aconteceu em todas as capitais com destaque para as maiores: Salvador, Goiânia, Fortaleza, Recife, Curitiba, Belo Horizonte[3] e Porto Alegre, onde tudo começou em fevereiro de 2013. A luta contra os preços dos transportes públicos no país é histórica, acontece desde a primeira república. Na década de 1980, tivemos alguns quebra-quebras e saques no Rio de Janeiro, tal como em outras cidades por esses motivos. No século XXI, a primeira revolta dessa natureza aconteceu em Salvador, denominada de “revolta do buzu”, em 2003. Também em 2011, os estudantes, em Florianópolis, protagonizaram grandes lutas pelo passe livre. A Revolta dos Governados de 2013 assumiu magnitude nacional em junho, em São Paulo, com a covarde repressão policial sobre os manifestantes, amplamente divulgada pelas redes sociais, o que obrigou os oligopólios de comunicação de massa no país a também divulgar, inclusive porque alguns jornalistas foram gravemente feridos.

Não obstante, foi na cidade do Rio de Janeiro que o movimento teve a maior proporção e continuidade. Nos atos dos dias, 17, mais de 400 mil pessoas, e 20 de junho, mais de 1,5 milhão de governados, cantaram, festejaram, protestaram, lutaram, respectivamente, em direção à ALERJ (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) e à sede da prefeitura da cidade. O dia 17 ficou marcado como aquele em que o povo “tomou” a ALERJ, quando a multidão enfurecida expulsou a polícia e tentou atear fogo na simbólica casa dos deputados fluminenses. Outrossim, nessa cidade as manifestações não se limitaram a junho, estenderam-se até julho do ano seguinte com atos praticamente diários, não mais de massa, é verdade, mas de categorias, populares e coletivos políticos combativos.

No estado do Rio de Janeiro, além da capital, todos os municípios de médio, muitos de pequeno porte, e até mesmo em bairros da periferia da capital fluminense como Bangu, Campo Grande, Bonsucesso, e favelas, como Rocinha, Vidigal, Maré, Cidade de Deus e Santa Marta, tiveram pessoas indo para as ruas protestar.

Como o Brasil é um país continental e as manifestações aconteceram simultaneamente em todos os estados da federação, foi impossível a qualquer observador participante acompanhá-las em tempo real. Portanto, o que segue são reflexões sobre a Revolta dos Governados na cidade do Rio de Janeiro, embora os motivos, o modus operandi, e as características tenham sido muito similares em todo o país pelo que podemos constatar a partir do midiativismo. Aliás, este foi outro fenômeno produzido pelo Levante, numa espécie de retroalimentação, quando diversos coletivos passaram a transmitir ao vivo as manifestações, sempre denunciando as ações truculentas das forças de repressão. Muitos apoiadores dos protestos, às vezes, por não poderem ir em função de diversos motivos, ficavam assistindo as manifestações onde estivessem.

Antes de continuarmos, cabe uma explicação acerca da escolha do título do livro.[4] A primeira questão a se destacar é que não utilizaremos o conceito de “Jornadas de Junho”, como hegemonicamente é tratada a revolta de 2013, por dois motivos. O primeiro é que o Levante popular no Rio de Janeiro não se resumiu a junho. Segundo, dada a importância de se classificar um fenômeno social por um nome adequado, sabendo que a escolha da denominação será fundamental para a percepção que se terá dela, não podemos designar protestos com enfrentamento semanais com a polícia simplesmente por jornadas. Nos dicionários[5], esse termo possui vários significados, menos insurgência; ou, quando indica algo similar, trata-se de fenômeno originalmente ligado à empresa militar. Em resumo, jornadas não significam prontamente uma revolta, insurgência, Levante, enfrentamento. Assim, não aponta com clareza para o interlocutor do que se trata.

Por isso, usamos o conceito de Revolta, como mais apropriado.[6] Vez ou outra também chamamos por Levante ou insurgência que, embora com algumas diferenças etimológicas, apontam para o mesmo fenômeno de enfrentamento popular.

Como subtítulo também elegemos o nome “Revolta do Vinagre”, em alusão ao produto da culinária brasileira que ajudou aos ativistas em geral, sobretudo aqueles da linha de frente das manifestações, na autodefesa com relação ao ataque das forças policiais com enorme quantidade de gás lacrimogênio.[7] Logo nos primeiros atos com intensa repressão e uso indiscriminado do gás, divulgaram pelas redes sociais que a utilização do vinagre aliviava a respiração no momento da infestação pelas armas químicas lançadas pelos agentes do Estado.[8] Inclusive, algumas pessoas foram detidas simplesmente por portá-lo em suas mochilas.[9] Simultaneamente, existiu uma grande solidariedade na sua distribuição. O vinagre, portanto, foi o primeiro item daquilo que depois se chamou de material de primeira necessidade do manifestante, o “kit manifestação”. Para cada arma das forças de repressão, os populares criaram uma maneira própria para autodefesa, nos termos de Kropotkin, segundo o qual era necessário nos momentos revolucionários que a própria população usasse sua excelente criatividade para a gestação do mundo novo. Assim, para não sucumbir diante do gás, os manifestantes da linha de frente perceberam que o vinagre se constituía como item fundamental, junto com um pedaço de pano, ou um lenço, ou a própria camisa. Mais tarde, esse processo evoluiu para o uso de máscara contra gás, para aqueles com maior poder financeiro. Com relação ao gás de pimenta, lançado, por vezes, indiscriminadamente pelos agentes da governança penal, as pessoas souberam que o leite de magnésio ajudava. Era comum vê-las com o rosto todo branco em função do uso do leite após as agressões policiais. Esse item também depois evoluiu para óculos de proteção. Para resistir aos ataques das balas de borracha, os manifestantes começaram a utilizar escudos improvisados, normalmente, como cartazes com mensagens combativas. Na hora da ofensiva policial, os cartazes eram transformados em material de defesa. Como a polícia e os oligopólios de comunicação de massa estavam ávidos por identificar e criminalizar os insurgentes, estes logo perceberam que era importantíssimo usar máscara ou camisa sobressaliente para tapar o rosto, assim evitando ser enquadrado em algum crime de formação de quadrilha e outros do direito penal de 1941 e/ou pelas leis criadas em 2013/14 exatamente para conter a Revolta dos Governados.[10] Por tudo isso, os revolucionários da linha de frente tinham que carregar mochilas nas costas, contendo esses itens de sobrevivência em manifestações. Além disso, alguns também carregavam objetos de contra-ataque, como: fogos de artifício, pedras e até coquetéis molotov caseiros.

Tratou-se, portanto, de uma rebelião popular auto-organizada sem uma direção centralizada que comandasse o processo. Assim, se formaram os Black Blocs e outros grupos de ação. A horizontalidade, a descentralização de inúmeros coletivos e indivíduos participantes, as roupas e bandeiras negras, o revival dos símbolos do anarquismo, junto com a ação direta deram a tônica do movimento.[11]  A descentralização da luta não só a possibilitou como foi seu principal combustível.

É mister destacar que faremos um exercício de filosofia, o mais básico de todos, que nenhum jornalista da grande mídia, nem intelectuais da esquerda oficial ou da direita conservadora fizeram. Trata-se de perguntar o porquê de parte dos manifestantes quebrarem vidraças de agências bancárias. Por que não colocaram essa dúvida? Tariq Ali (2012) define o Occupy Wall Street e a sua relação com o sistema financeiro da seguinte maneira:

“Os manifestantes do movimento Occupy Wall Street (…) estão protestando contra um sistema de capital financeiro despótico: um vampiro infectado pela ganância que sobrevive chupando o sangue de quem não é rico. Eles estão demonstrando seu desprezo com relação aos banqueiros, aos especuladores financeiros e seus mercenários da mídia, que continuam insistindo que não há alternativa. Já que o sistema de Wall Street domina a Europa, lá também há versões locais desse modelo.”

Essa definição abre vários precedentes para entendermos melhor as manifestações no Brasil. Focaremos nossa pesquisa na interpretação da ação direta e na propaganda pelo fato, realizada por diversos coletivos conscientes de suas ações e que reivindicavam a possibilidade da auto-instituição social através do socialismo/anarquismo. É absolutamente necessário em nome dos diversos grupos autonomistas, anarquistas, marxistas não institucionais e populares insurgentes o resgate da memória do maior movimento popular da história do Brasil. Destarte, temos que desmistificar as teses petistas, fascistas, da esquerda oficial, dos neoliberais desavergonhados e valorizar a rebelião dos governados e explorados brasileiros.

Pretendemos apresentar as vozes dos setores populares mais atuantes da Revolta dos Governados de 2013 no Brasil, por meio da tradução de suas ações diretas e propagandas pelo fato que deixaram perplexa e atônita, num primeiro momento, todos os governantes, tanto da direita, quanto da esquerda, institucionais.

Normalmente, as sociedades que passam por processos insurrecionais deixam um gérmen de um novo mundo e é claro que em disputa com o velho e moribundo. Às vezes, sua ação é tão intensa e profunda que cria sua antítese. Indubitavelmente, trata-se de um movimento único, muito rico e que precisa ser teorizado, pormenorizado e registrado nos anais da História.

Podemos adiantar que a Revolta do Vinagre fez com que todos os governantes dos mais diferentes partidos políticos e colorações ideológicas do país voltassem atrás no aumento do valor do transporte público. Este fato constitui-se como a grande vitória material do movimento e imediatamente deve entrar para a História brasileira. Não obstante, o movimento foi muito mais rico do que isso e deixou outros diversos legados. Vejamos.

 A AÇÃO DIRETA E A PROPAGANDA PELO ATO MOSTRARAM A EXTENSA PAUTA DO MOVIMENTO 

De maneira geral, a Revolta dos Governados deverá ficar na história como aquela que teve como alvos principais os símbolos do Estado, do capitalismo, da plutocracia representativa, dos oligopólios de comunicação de massa, das hierarquias e das posturas conservadoras e preconceituosas tipicamente racistas, machistas, homofóbicas e contra os pobres. Além do mais, perceberemos que os protestos no Brasil seguiram uma tendência dos novos tempos iniciada com as lutas da Ação Global dos Povos em 1998, também conhecida como antiglobalização. Se em Seattle a descentralização apresentou-se como a ideologia do movimento (Graeber, 2011; Dupuis-Déri, 2014, Ludd, 2002; Gordon, 2015), podemos dizer que no Brasil não foi diferente.

Indubitavelmente, a Revolta pôs em xeque muitos paradigmas considerados estáveis do cotidiano brasileiro. Apresentamos a seguir as principais características da Revolta dos Governados durante pouco mais de um ano, entre junho de 2013 e julho de 2014, marcada por centenas de protestos de rua.

1)    CAPACIDADE DE LUTA POPULAR

O primeiro deles foi a forte expressão de capacidade de luta dos governados, desmentindo a tese, muito difundida por todos os governantes e seus intelectuais orgânicos, segundo a qual o brasileiro seria, por natureza, “cordial, pacato e conciliador”, significando, na prática, um “cidadão” subordinado, explorado, consciente e feliz. Muitos dos jovens que foram às manifestações estavam em fase de batismo na política, como disse Gohn (2014).

Além disso, os protestos ocuparam praças e principais avenidas das grandes cidades. Diversas ocupações foram realizadas em outros momentos históricos, todavia, no Brasil e, em particular, no Rio de Janeiro existem os lugares considerados “próprios” e relativamente seguros para os manifestantes. Esses espaços situam-se na capital carioca entre o Centro e a zona sul, podendo ser alargada excepcionalmente até a Tijuca, desde que não fique muito próxima das favelas. Em qualquer outro espaço da periferia, do subúrbio e das comunidades pobres, as forças repressivas não permitem qualquer tipo de manifestação de seus habitantes e logo taxam como ações do “crime organizado” ou a seu mando, fato que justifica a repressão, tortura e até extermínio físico desses insurgentes. Portanto, protestar fora dos limites “permitidos” pelos governantes constitui-se como grande risco de prisão, associação ao tráfico de drogas, tortura, morte. Em junho de 2013, os governados quebraram essa perspectiva e protestaram até nos lugares mais periféricos. Embora, em função de um dos protestos em Bonsucesso que resultou na morte de um policial, a polícia tenha exterminado 5 pessoas na favela da Maré no dia seguinte.

2)     NOVAS FORMAS DE PROTESTAR

Ganhou força uma nova forma de protestar no Brasil, uma nova estética nas manifestações, caracterizada tanto pela ausência de palanque, quanto pela negação dos carros de som, tipo trio elétrico, nos quais os “comandantes” procuravam ditar as palavras de ordem para a “base”. A nova forma de protestos negou a existência dos “líderes”, as pessoas levavam seus cartazes e cantavam coletivamente suas palavras de ordem, embaladas por baterias e palmas dos presentes. Foram criadas várias oficinas de cartazes/faixas que foram carregadas coletiva e individualmente. Além disso, a participação foi amplamente diversificada, desde os trabalhadores comuns de todos os setores até skatistas. Foi muito comum ver moradores de rua participando ativamente. Um deles, Rafael Braga, encontrava-se preso até junho de 2018.[12]

Como parte das disputas entre a gestação do mundo novo, mais horizontal, contra as formas hierárquicas e tradicionais de reivindicação, aquela entrou em conflito com as tendências de alguns partidos políticos oficiais, que, com seus aparatos burocráticos, tentaram dirigir a revolta com seus carros de som, buscando colocar a sua palavra de ordem, normalmente, com viés eleitoreiro, como sendo supostamente a de todos.

Além do mais, as manifestações passaram a ser mais violentas e contestadoras da ordem, diferente das anteriores controladas pelos partidos da esquerda oficial, que não almejavam a destruição do sistema como um todo, mas substituir o governante da hora para, ocupando os cargos, fazer mudanças pontuais na gestão do Estado e do capitalismo.

3)    FORMAÇÃO DE COLETIVOS E AMPLA SOLIDARIEDADE NOS PROTESTOS

É importante destacar a ampla solidariedade do movimento com a participação ativa de diversos segmentos profissionais. Os governados, espontaneamente, através de coletivos já existentes e/ou com outros criados especificamente para dar amparo aos manifestantes, estabeleceram uma grande rede de solidariedade/difusão das manifestações e denúncia das arbitrariedades policiais. Assim, criaram-se diversas associações coletivas como: a) os advogados ativistas, que faziam plantão nas delegacias com vistas a garantir o respeito aos detidos e, por consequência, a liberdade deles; b) os enfermeiros, estudantes e profissionais da saúde que acompanharam as manifestações vestidos de branco e com seu material de primeiros socorros para ajudar aos feridos; c) o midiativismo[13] e jornais populares como o “A Nova Democracia”, que fizeram um enorme contraponto à censura dos oligopólios de comunicação de massa, divulgando a realidade das manifestações sem cortes; d) os hackers que conseguiram postar mensagens dos insurgentes nas grandes mídias e ainda fizeram cair páginas contra o movimento, como a da Rede Globo e outras[14]; e) grupos de músicos/bateristas levaram seus instrumentos para animar as canções;[15] f) projetistas fizeram projeções de palavras de ordem e de imagem em favor do movimento em prédios públicos[16]; g) foram criados comitês de solidariedade internacional em Barcelona, Londres, Nova York, Berlim, Atenas, Istambul e outros.[17] Por fim, todos se transformaram em ativistas das redes sociais. Uma grande luta ideológica foi travada e a grande vitória foi estabelecer um momento no qual o Brasil inteiro discutiu política por uma maneira ampla e contestadora.

A solidariedade também se expressou quando alguém era detido pela polícia. Nesse momento, vári@s companheir@s, não existe palavra melhor, se dirigiam às delegacias para demandar pela liberdade dos detidos e garantir que eles saíssem ilesos. Passeatas foram organizadas para exigir a liberdade dos presos políticos. Nas audiências desses incriminados, vários coletivos puxaram atos em frente ao Fórum. A solidariedade à Rafael Braga foi exemplar e extrapolou o Rio de Janeiro. Por ele, muitas pessoas trocaram seu perfil do Facebook e começaram suas intervenções públicas com “primeiramente, liberdade para Rafael Braga”. O mesmo aconteceu com relação aos 23 processados e perseguidos políticos pela “ilibada” governança plutocrática de Sérgio Cabral.[18] Uma das canções entoadas pelos manifestantes era: “pisa ligeiro, quem não pode com a formiga, não atiça o formigueiro”.

1)    CONTRA OS SÍMBOLOS DO CAPITALISMO

Depois dos símbolos do Estado, os bancos – maiores beneficiados no capitalismo financeiro contemporâneo[19] e vistos como verdadeiros usurpadores oficiais por parte dos governados – foram os alvos privilegiados de todas as manifestações. Segundo reportagem baseada em dados fornecidos pelo Banco Central,[20] o Brasil tem os juros bancários mais altos do mundo e quem paga a conta mais cara são os mais pobres. Em 2018, 18,2 milhões de pessoas estavam com saldo devedor no rotativo do cartão de crédito. Destes, quase 30%, que não conseguem pagar o mínimo da fatura do cartão, estão no programa Bolsa Família. “Eles recebem o benefício porque têm renda familiar mensal menor que R$ 170 por pessoa. Apesar disso, têm que arcar com os juros de 397% ao ano no chamado rotativo não regular (quando o cliente não paga nem o mínimo). Uma taxa como essa torna a dívida impagável. Uma família que não consiga quitar uma fatura de R$ 500, por exemplo, tem em um ano uma dívida de R$ 2.486. Pelo levantamento, 77,9% das pessoas que estão no pior rotativo têm até o ensino médio.” Esse é o quadro do endividamento brasileiro com base em juros arbitrários absurdos, tendo como alvos principais os mais pobres, mais necessitados. Simultaneamente, em 2013, os seis maiores bancos apresentaram lucro líquido total de R$ 56,7 bilhões.[21] Talvez, como reflexo disso, no dia 20 de junho, no Rio de Janeiro, por exemplo, todos os bancos da Avenida Pres. Vargas e alguns outros de ruas adjacentes do Centro foram “desfigurados” por paus e pedras, enquanto todas as escolas, bibliotecas e hospitais foram preservados. O “camelódromo”, ou mercado popular, situado no quarteirão da rua Uruguaiana com a Presidente Vargas, ficou intacto, sem nenhum arranhão. Depois dos protestos quase diários no Rio de Janeiro entre junho e outubro, praticamente todas as agências bancárias do Centro da cidade, bairro com a maior concentração de bancos do estado, e das Laranjeiras, onde residia o governador, tiveram suas fachadas/vidraças destruídas, como um ato simbólico bastante significativo.

2)    CONTRA OS OLIGOPÓLIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA E SUA POSTURA ANTIPOPULAR.

Além dos bancos e das instituições estatais, tudo que representava os oligopólios de comunicação de massa no Brasil também foi questionado, inclusive seus jornalistas. Foram vários carros das emissoras queimados, como sedes de algumas delas, alvos preferenciais de ataque por todo o país. Os repórteres identificados nos protestos foram prontamente expulsos. Os governados indignados cansaram de ser manipulados pelos governantes socioculturais e seus oligopólios de comunicação de massa.[22] Uma das principais palavras de ordem entoadas nos protestos era: “A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura”.[23]

4)    CONTRA AS MULTINACIONAIS.

As lojas McDonald’s também simbolizaram alvos preferidos por representarem o grande capital. Além delas, concessionárias de carros de luxo, de telefonia e, particularmente, no Rio de Janeiro, empresas do grupo X[24] do até então homem mais rico do país, Eike Batista, sofreram ataques de paus e pedras dos manifestantes. Os populares se revoltaram contra a exploração e as extremas desigualdades estimuladas e mantidas pelos donos do capital (governantes econômicos).

 É importante destacar que o país figura como um dos mais desiguais do mundo, fruto de intensa exploração social garantida por trabalho precário, baixos salários, poucos direitos e falcatruas com dinheiro público, protagonizado por políticos, burocratas e empresários de diversos ramos. Operações como a Lava-jato e outras mostraram essas agruras e como os revoltosos estavam com razão.

3)    CONTRA A ARBITRARIEDADE E A CORRUPÇÃO DE POLICIAIS

Um dos principais alvos e motivos dos protestos foi a atuação das forças de repressão no país. Houve enfrentamento com a polícia em praticamente todas as capitais, mostrando a disposição daqueles que ocupavam a linha de frente e a ausência de qualquer acordo ou simpatia entre manifestantes e governantes penais. Como se diz em algumas favelas do Rio de Janeiro: “não tem arrego”. Existe indubitavelmente uma percepção popular de que a instituição policial é corrupta e comete grandes abusos de autoridade, principalmente nos lugares mais pobres.

As manifestações foram contra todos os assassinatos de “Amarildos”[25] das periferias e favelas do país. Foram contra todas as chacinas: de Vigário Geral, Candelária, Vidigal, Rocinha, Alemão, Baixada, Maré e outras várias. No Brasil, os índices de homicídios são altíssimos, superando amiúde os de países em guerra declarada.[26] A polícia truculenta é a principal responsável. Além do mais, é comum ver policiais com patrimônios absolutamente incompatíveis com os seus ganhos oficiais. Ademais, nos próprios protestos, manifestantes foram detidos simplesmente por portarem máscaras, vinagre e instrumentos musicais. Outrossim, ao exigirem o fim da polícia, os insurgentes faziam uma das principais políticas antirracista no Brasil. Uma das palavras de ordem dos protestos pedia o fim da Polícia Militar e consequentemente de sua governança penal: “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”. Também se cantou: “Sem hipocrisia, essa polícia mata pobre todo dia”.

Rocinha e Vidigal, que eram antigas rivais, protestaram juntas em 2013 contra a violência policial.

4)    EXPRESSOU A CRISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E CONSEQUENTEMENTE DA PLUTOCRACIA VIGENTE

A crítica aos partidos políticos eleitorais evidenciou a crise da Ditadura Plutocrática-Militar Dissimulada, chamada por todos os governantes de democracia representativa. Os manifestantes também gritaram “sem partido”, e “não nos representa”. Este foi mais um sinal do desgaste de todos os partidos políticos, mas para além disso, os governados ficaram cansados de eleger um candidato e ver que ele representa nada mais que seu interesse pessoal durante o mandato. Práticas que autores da ciência política denominaram de clientelismo, coronelismo, patrimonialismo e malversação de dinheiro público, dito popularmente como “roubalheira generalizada”, fez com que os eleitores perdessem quase que totalmente a crença nos partidos e nas eleições. Indubitavelmente, existe uma percepção popular, não sem motivos, de que o mundo político institucional está permeado por corrupção, nepotismo e acordos espúrios. Recentemente, a população elegeu um operário e depois uma mulher para o maior cargo político do Brasil, pois além do simbolismo, se apresentavam como oposição ao sistema. A despeito dessas simbologias, o país continuou como paraíso dos banqueiros.

Como expressão do processo supracitado, o Congresso Nacional, a Assembleia Legislativa do Rio (ALERJ), diversas prefeituras e prédios estatais em todo o país foram atacados pelos manifestantes. A mensagem passada por esses ataques era muito óbvia; os governados queriam dizer em alto e bom som: “essas instituições não nos representam”. Duas das principais canções propaladas sobretudo, pelos setores revolucionários era: a) “Eleição é farsa, não muda nada não, o povo organizado vai fazer revolução”; b) “Fora Cabral, o Estado e o capital” ; c) “Rio de Janeiro, sensacional, tomou a ALERJ com pedra e pau”.

5)    CRÍTICA A MÁ PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS E A PRECARIZAÇÃO DO PÚBLICO.

Vários postos de pedágio nas estradas pelo país, que representam fielmente a privatização ditada pelo neoliberalismo, foram totais ou parcialmente destruídos. O Brasil tem uma das maiores cargas tributárias do mundo, no entanto, mesmo assim, as pessoas precisam pagar pedágios com preços absurdos para circular. As câmeras que multam os veículos, conhecidas popularmente como “pardais”, constituem uma grande “indústria da multa” e também foram atacadas em diversas manifestações. No dia 20 de junho de 2013, todos os pardais do caminho dos ativistas foram destruídos sob aplausos da multidão.

6)    CRÍTICA AOS ABSURDOS PREÇOS COBRADOS PELOS TRANSPORTES PÚBLICOS.

O estopim para todos esses protestos foi o aumento dos valores cobrados pelas passagens de ônibus no país, inexplicavelmente, de forma sincrônica. Só no Rio de Janeiro desde a criação do Plano Real, em 1994, a passagem tinha aumentado 1000%, enquanto a inflação oficial do período não passou de 350%. Explicaremos.

Em 2013, o preço básico do transporte público no Rio de Janeiro antes dos protestos era de R$ 2,75. Com o aumento para R$ 2,95, os governados foram para as praças protestar. Depois de mais de 1,5 milhão de pessoas nas ruas, o preço voltou para o valor anterior. Todavia, no início do ano de 2014, o prefeito da cidade autorizou o aumento para R$ 3,00. Assim, a cifra fechou exatos 1000% de aumento desde a criação da URV (Unidade Real de Valor), que estabeleceu os princípios para o Plano Real, pois o preço da passagem de ônibus naquele momento era de R$ 0,30.

Em janeiro de 2015, o valor da passagem passou para R$ 3,40, quando deveria passar para R$ 3,20. O prefeito argumentou que o aumento para R$ 3,40 seria para que as empresas colocassem toda a frota com ar condicionado. Em julho de 2017 já custava R$ 3,80 e apenas 42% da frota possuía refrigeração. Então, o Ministério Público exigiu e ganhou a redução de R$ 0,20 em setembro de 2017 dos altos valores das passagens de ônibus no Rio de Janeiro. Ainda assim, o preço do transporte público, de péssima qualidade, sobretudo para os bairros habitados por pessoas com baixo poder aquisitivo, é um dos mais caros do mundo.[27] Uma das canções era: “Se a passagem… não abaixar, o Rio, o Rio, o Rio vai parar, olê, olê, olê, olá… olê, olê, olê, olá”. “Ô motorista, ô cobrador, me diz aí se seu salário aumentou”.

7)    CONTRA OS GASTOS EXORBITANTES COM ESTÁDIOS DE FUTEBOL PARA A COPA DO MUNDO E PELA SUA DEMOCRATIZAÇÃO

Uma das palavras de ordem mais emblemática dos protestos era: “Não vai ter Copa!”. Os governados ficaram absolutamente indignados com os gastos exorbitantes com estádios de futebol, em função da preparação para a Copa do Mundo, enquanto faltava o básico: nos hospitais, nas escolas, saneamento básico, empregos, ruas pavimentadas etc. Ademais, como forma de afronta à inteligência dos governados, os estádios de futebol, reformados com dinheiro público, foram concedidos à administração da iniciativa privada[28] (privatizados), que passaram a cobrar preços exorbitantes com vistas ao lucro. Essa medida afastou o povo pobre de uma de suas maiores paixões. Por consequência, foi criada a Frente Nacional dos Torcedores (FNT), cuja demanda principal era pela redução dos preços dos ingressos, tendo atuação importante nos protestos, principalmente nos embates com as forças policiais e com suas baterias, dando ritmo às manifestações. Uma de suas canções era “Sai do chão, sai do chão, o Maraca é do povão”.

Foi surpreendente ver o povo apaixonado por futebol não sair às ruas para comemorar um título da seleção brasileira, como o da Copa das Confederações, em 2013.[29] Era muito comum ver cartazes de manifestantes pedindo hospitais e escolas com o “padrão FIFA”, em alusão às exigências dessa instituição para um determinado modelo de construção nos campos de futebol. Outra canção era: “Da copa, Da copa, Da copa eu abro mão, eu quero é dinheiro pra saúde e educação”.

5)    CONTRA AS REMOÇÕES.

Com a proximidade dos grandes eventos, a privatização dos complexos esportivos, a construção de estradas para os estrangeiros circularem em direção aos aeroportos e a especulação imobiliária realizadas pelas governanças políticas em conluio com governantes econômicos resultaram em várias famílias expropriadas de suas casas, através de remoções forçadas no Rio de Janeiro. Os casos da Aldeia Maracanã e da Vila Autódromo foram os mais emblemáticos. No caso da Aldeia, a desocupação forçada e truculenta realizada em 22/03/2013 serviu como um dos ensaios daquilo que seria a grande revolta em junho do mesmo ano. Muitos militantes autônomos estiveram presentes para fazer a defesa da Aldeia e enfrentar as forças de repressão. Em junho, os indígenas voltaram a ocupar o prédio. Ele foi novamente desocupado de forma violenta no dia 15/12/2013, com 20 pessoas detidas pela polícia.

Este foi um processo de grande custo social, que mobilizou muitas pessoas para os protestos.

6)    CONTRA AS UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora).

No Rio de Janeiro, para manter a população pobre subordinada e supostamente acabar com o tráfico de drogas e com os homens armados nas favelas foram criadas UPPs, que muitas vezes oprimiram essas comunidades. São notórios os casos de prisões arbitrárias de seus moradores e de tortura até a morte, como os de Amarildo e “DG”, só para citar os mais conhecidos de 2013/14.[30] Em uma das UPPs, policiais estupraram mulheres que tiveram a coragem de denunciar. O assassinato de Claudia de Madureira, realizado por PMs, ainda não foi resolvido.[31] É importante ressaltar que o tráfico de drogas permaneceu, mesmo nas comunidades com UPPs. Por esses e outros motivos, muitos dos moradores das favelas e periferias participaram dos protestos intensamente. Uma das palavras de ordem dos protestos pedia pela vida do Amarildo: “Cabral bandido, cadê o Amarildo?”

Manifestação no Complexo da Maré em 2013 contra a violência policial.

7)    DEFESA DA HORIZONTALIDADE

A juventude mostrou-se embebida por uma nova forma de vida com pouca tolerância para hierarquias e autoritarismos. Por isso, os carros de som nas passeatas não eram bem-vindos. Os políticos oportunistas fazendo campanha eleitoral também foram rechaçados. Os estudantes almejavam estruturas horizontais que mantivessem a igualdade do início ao fim. Foi sem dúvida um avanço e uma vitória do anarquismo: o amor pelas formas de organizações horizontais e descentralizadas.

8)    CONTRA O RACISMO, O MACHISMO E A HOMOFOBIA

Justamente em 2013, o deputado Marcus Feliciano tentou aprovar no Congresso Nacional uma lei que discriminava homossexuais. Diversos setores sociais se rebelaram contra tal medida que não foi aprovada. A comunidade LGBTQIA+ participou ativamente das passeatas e em uma específica contra a vinda do Papa Francisco. A luta feminista esteve fortemente representada com a “Marcha das Vadias” e também no interior das passeatas.[32] Os indígenas da Aldeia Maracanã protagonizaram grande resistência contra as remoções. A morte do Amarildo foi vista pelo movimento negro como mais uma atitude racista e teve amplo rechaço por diferentes setores anti-racistas. A presença de negros nas linhas de frente foi facilmente percebida, sobretudo nos Black Blocs. Uma das canções entoadas pelas pautas identitárias foi: “se cuida seu machista, a América Latina vai ser toda feminista”; “lugar de mulher é onde ela quiser”; “Sem hipocrisia, essa polícia mata preto todo dia”; “Cadê o Amarildo?”.

Segue abaixo uma nota de um dos coletivos de 2013 sobre o papel da mulher na luta. Vale a leitura desse documento histórico.[33]

DA LINHA DE FRENTE NINGUÉM ME TIRA! 8 de Março – Dia Internacional da Mulher Trabalhadora

DA LINHA DE FRENTE NINGUÉM ME TIRA! 

8 de Março – Dia Internacional da Mulher Trabalhadora

O capitalismo apenas concedeu às mulheres trabalhadoras a dupla-exploração e a superexploração. Ao passo que aumenta a participação das mulheres no mercado, cresce a informalidade\precarização entre elas. Essa tendência se intensifica em função da Copa, com as remoções e a especulação imobiliária, o deslocamento dos postos de trabalho, a instabilidade no emprego e o arroch­o salarial, que empurram ainda mais a mulher trabalhadora para a informalidade. As mulheres constituem grande parte do proletariado marginal e sendo parte da classe trabalhadora e oprimida, se indigna e luta.”

Desde o início das jornadas de ju­nho em 2013 é nítida a predominância da estudantada e proletariado marginal nas ma­nifestações; logo, também é notória a parti­cipação das mulheres nos atos mais combati­vos e na linha de frente destes, atuando de forma intensa, contínua e crescente nas ruas, assumindo tarefas cada vez mais ousadas e ofensivas.

 Nas manifestações é evidente que os agentes de repressão do Estado têm como alvo tático as mulhe­res. Ademais da re­pressão violenta e generalizada nos atos, as detenções das ma­nifestantes, via-de-regra, são acompa­nhadas de assédio e abuso sexual, além de depreciação misó­gina. O Estado, reco­nhecendo nas mulhe­res uma ameaça ao sistema de exploração-opressão, tratou de recrutar um enorme con­tingente de policiais femininas, neo-capitãs do mato, para atuarem objetivamente contra as mulheres do povo.

Os inimigos de classe e seu “femi­nismo” burguês, apoiando-se e apoiados pela mídia (burguesa) de massa, ansiosos por en­quadrar as mulheres num ideal de feminili­dade, assustam-se ao ver corpos femininos reincorporando a agressividade e combativi­dade que a sistemática domesticação bur­guesa (e patriarcal) tentou aplacar.

No campo, historicamente, as mulhe­res desempenharam papéis decisivos na luta pela terra. São incontá­veis as lideranças cam­ponesas mulheres atu­antes e alarmante é o número destas assassi­nadas pelo Estado e pelo latifún­dio\agronegócio. Tam­bém, nota-se que na medida em que os dife­rentes povos indígenas reconhecem a impor­tância da mulher não apenas na organização interna de suas comunidades, mas na for­mulação de estratégias de luta por direitos e território, avançam mais consistentemente em direção aos seus objetivos. Ao longo dos últimos anos, as mulheres indígenas vêm se destacando como referência política inclu­sive para os não-índios.

A cultura da subserviência sexual e de violência doméstica\familiar também servem como dispositivos de amansamento da mu­lher proletária, consequentemente são ferra­mentas de dominação de classe. Portanto, é preciso apontar que o opressor machista age indiretamente em favor dos exploradores. Neste sentido, é urgente combater o ma­chismo que se manifesta também no seio da classe trabalhadora. Ele age para nos divi­dir. Não se pode reivindicar o classismo sem incorporar a luta pela emancipação inte­gral da mulher (econômica, política, sexual, cultural e etc.). O povo só se liberta quando todas suas frações e grupos se libertam.

Nos primeiros grandes atos de 2013, parte dos manifestantes, tomados por senti­mentos paternalistas, clamavam às comba­tentes que recuassem. Mas, com a progressão dos atos e com a intransigência destas mu­lheres, que não admitem serem me­ras espectadoras de suas próprias batalhas, coube aos homens dizer “Avante, lutadoras!” e marchar ao lado delas, confiantes, ombro-a-ombro, rumo à emancipação integral do proletariado e de suas frações marginais.

“Da linha de frente ninguém me tira” é a resposta das mulheres combativas ao Es­tado e ao machismo. Não basta apenas mo­bilizar as mulheres para que tomem as ruas, mas exigir dos homens que as reconheçam como companheiras de luta e heroínas do povo, que as respeitem e que se solidarizem a elas, em toda parte e sempre. Homens e mulheres trabalhadoras: somos uma só classe!

Avante mulheres Black Blocs!

Pela construção de comitês de autodefesa das mulheres!

Combater o machismo é tarefa revolucionária!

NÃO VAI TER COPA!!!

ASSINAM ESSE MANIFESTO:

Fórum de Oposições pela Base – FOB

Rede Estudantil Classista e Combativa – RECC

Aliança Classista Sindical – ACS

Oposição de Resistência Classista – ORC

Coletivo Aurora

Liga Sindical Operária e Camponesa – LSOC”

9)    AUMENTO DAS GREVES E DOS ENFRENTAMENTOS

Por fim, é importante ressaltar que 2013 significou um aumento exuberante do número de movimentos paredistas dos trabalhadores. Os protestos serviram como estimulante para todo tipo de luta e a greve como instrumento fundamental de reivindicação não fugiu à regra. Vejamos no gráfico a seguir essa comprovação, indicando que não se tratou apenas de um ascenso de lutas nas ruas, mas que reverberaram também para as fábricas e os locais de trabalho, com clara contestação das governanças econômicas. O ano de 2013 expressou a maior quantidade de greves desde quando passaram a ser contabilizadas pelo Dieese, em 1984.

 Vejamos na tabela abaixo o crescimento de mais de 100% da quantidade de greves de 2012 para 2013.

Além do aumento da quantidade de greves no país, muitas delas assumiram um caráter diferenciado, por exemplo, os garis, os rodoviários, os caminhoneiros e os trabalhadores do Complexo Petroquímico (COMPERJ)[34], no Rio de Janeiro, mas também em algumas outras cidades do país, com suas mobilizações se sobrepuseram às direções sindicais pelegas, aos governos e aos oligopólios de comunicação de massa que teimaram em tentar desqualificá-las. Os garis entraram em greve em pleno carnaval. A direção do seu sindicato fez um acordo com o governo para evitar a greve, todavia os trabalhadores a desrespeitaram e mantiveram a paralisação. O governo cortou o ponto dos trabalhadores e colocou a polícia e a guarda municipal para vigiá-los em seus trabalhos. Os governantes socioculturais criticaram veementemente a greve, mas os trabalhadores mantiveram o movimento e ganharam a solidariedade de diversos setores mais combativos na sociedade. Por fim, a categoria conseguiu arrancar um aumento substantivo dos salários perante o governo, embora ainda muito abaixo diante da exploração que sofrem. Não obstante, sem dúvida foi uma vitória dos trabalhadores que tiveram que enfrentar o próprio sindicato, o governo e a grande mídia.

Então, qual era a pauta do movimento? Só não viu quem não quis.

O panfleto abaixo do FOB – Fórum de oposições pela Base – resumiu bem a pauta radicalizada.[35]

Indubitavelmente, essas foram as maiores expressões das manifestações de 2013 no Rio de Janeiro. Apresentada a extensa pauta do movimento e antes de debater os fatos propriamente, cumpre explicarmos nossas opções teóricas e as respectivas ressalvas metodológicas para estudo do nosso objeto: a Revolta do Vinagre. Passemos, então, para o nosso capítulo teórico, no qual apresentaremos os nossos conceitos e metodologias.


[1] Em diversas partidas, os jogadores da elite do futebol brasileiro fizeram protestos simbólicos antes, durante e depois das partidas de futebol, cruzando os braços, sentando em campo, ou mesmo jogando sem propósitos durante um determinado tempo no início da partida. Suas reivindicações foram principalmente por um calendário com menos jogos.

[2] Dados in “Artigo 19” (2013).

[3]  Em Belo Horizonte, no dia 22, ocorreu a maior manifestação da história de Minas Gerais, contando com a presença de mais de duzentas mil pessoas. A polícia reprimiu fortemente o ato e os manifestantes responderam quebrando os radares, as concessionárias de automóveis, bancos e grandes empresas que estavam no caminho.

[4] A importância do nome que se dá à Revolta é de suma importância no cenário da disputa ideológica que se trava em torno da interpretação da mesma. Graeber (2015), por exemplo, descreve como Alexander Hamilton denominou uma das revoltas populares em favor da expropriação de grandes especuladores logo após a Guerra pela independência dos EUA como a Rebelião do Uísque, para que os rebeldes parecessem caipiras bêbados “em vez de, como Terry Bouton demonstrou, cidadãos pedindo maior controle democrático” (Graeber, 2015: 168.).

[7] A luta contra o uso indiscriminado do gás lacrimogênio contra manifestantes tem sido uma luta mundial marcada pela troca de informações sobre como resistir ao uso dessa arma química. Uma boa referencia sobre o assunto é o livro de Anna Feigenbaum (2017) disponível em https://www.versobooks.com/books/2109-tear-gas. O site Outras Palavras traz uma boa prévia sobre o assunto. Ver: https://outraspalavras.net/uncategorized/a-batalha-mundial-contra-o-gas-lacrimogenio/

[8] Tem uma sátira com o comercial da Fiat realizada por manifestantes de Campinas que usaram o vinagre como símbolo. Vale ver: https://www.youtube.com/embed/iGai5q27pUg Fonte Ferreira (2015).

[9] O caso mais conhecido foi o de um jornalista da revista Carta Capital em junho de 2013, em São Paulo.

[10] Decreto nº 44.305, de 24 de julho de 2013. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro de 25/07/2013. Governador do Estado. Rio de Janeiro.

[11] Algo muito semelhante aconteceu na Europa e na América do Norte. Ver dois excelentes registros históricos: Ludd (2002) e Duppuis-Déri (2014).

[12] Em junho de 2018, Rafael Braga estava em prisão domiciliar para tratamento de tuberculose que contraiu no sistema prisional.

[13] Foram formados diversos coletivos midiativistas: O Mídia Ninja, o Mariachi, O Badernista, Coletivo Carranca, Mídia 1508 foram alguns deles.

[14] Os hackers, por exemplo, em uma das atitudes mais ousadas divulgaram os endereços de todos os policiais do estado do Rio de Janeiro.

[15] Em São Paulo, Locatelli (2013) diz que o motor dos protestos foi a “Fanfarra do Mal”.

[16] O coletivo Projetação foi um deles.

[17] Ao menos quatro manifestações em apoio aos protestos realizados no Brasil, contra o aumento da passagem de ônibus, foram organizadas por meio do Facebook em cidades europeias: Paris (França), Berlim (Alemanha), Coimbra (Portugal) e Dublin (Irlanda). http://noticias.r7.com/…/manifestacoes-na-franca-e-na-alema…

[18] Ficou comprovado no processo judicial que, toda vez que o valor da passagem de ônibus no Rio de Janeiro sofria aumento, o governador Sérgio Cabral recebia propina.

[19] Ver Chesnais (2005).

[20] Fonte: O Globo de 01 de julho de 2018, pag. 27 e newsletter do jornal do dia anterior.

[22] Vejam a horrorosa cobertura da Globo sobre a prisão de um professor, sempre justificando as atitudes policiais e tentando induzir ao expectador que ele poderia ser uma pessoa perigosa. Uma cobertura da pior qualidade. É esse o papel dos oligopólios de comunicação de massa no Brasil.

http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/videos/t/todos-os-videos/v/policia-faz-detencoes-em-manifestacao-no-centro-do-rio/3412291/

[23] A Rede Globo é a maior empresa de comunicação de massa do país e tem marcado em sua história o apoio incondicional ao regime militar, instalado no Brasil em 1964.

[24] O império X de Eike Batista ruiu exatamente no ano de 2013. Ver: http://g1.globo.com/economia/ascensao-e-queda-de-eike-batista/platb/

[25] Amarildo de Souza era ajudante de pedreiro e morador da Rocinha, maior favela da América Latina. Ele foi sequestrado, torturado e assassinado por policiais dentro de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na referida comunidade. A busca por saber “Onde estava Amarildo?” ganhou contornos gigantescos nas manifestações.

[26] Os dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP/SSP-RJ) revelam que, entre 2001 e 2011, mais de 10 mil pessoas foram mortas em confronto com a polícia no Estado do Rio de Janeiro em casos registrados como ‘autos de resistência’.

[27]“Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2010, 37 milhões de brasileiros não têm dinheiro para pagar a passagem de ônibus regularmente” (Locatelli, 2013).

 

[28] No caso do Maracanã, a concessão foi para a Odebrecht, uma das empresas amplamente denunciadas em casos de corrupção com governantes políticos.

[29] Somente os ricos, com condições financeiras para pagar o caríssimo ingresso, comemoraram no estádio do Maracanã.

[30] Amarildo e Douglas Silva, DG, eram moradores de favela no Rio de Janeiro. O primeiro, como mencionado acima, era ajudante de pedreiro; o segundo, era participante de um programa de auditório na Rede Globo de televisão. Ambos foram assassinados por policiais.

[32] Foi em 2013 que o movimento #PrimeiroAssédio começou e ganhou força, antes mesmo do #METOO dos EUA. Aqui a ONG Olga criou uma campanha contra os assédios às mulheres logo após uma menina de 12 anos ter sido alvo de comentários de cunho sexual depois de apresentar-se em um programa de culinária. Ver: https://thinkolga.com/2018/01/31/primeiro-assedio/. Em 2015, as mulheres desencadearam uma enorme campanha vitoriosa pela saída do deputado Eduardo Cunha que dificultava o aborto após um estupro. Em 2018, uma anarquista baiana criou o movimento #ELENÃO contra a campanha do Bolsonaro à presidência da República e foi um sucesso em todo o país. As mulheres têm assumido o protagonismo na política e 2013 também foi um marco importante para tal empreitada.

 

[33] Ele foi publicado no dia 7 de março de 2014. Fonte: http://oposicaopelabase.blogspot.com

 

[34] Sobre a greve do COMPERJ vale ver site do FOB com muitas informações a respeito: http://oposicaopelabase.blogspot.com

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