A insurreição invisível:
uma interpretação anti-governista da rebelião de 2013/14 no Brasil[1]
Wallace dos Santos de Moraes[2]
Camila Rodrigues Jourdan[3]
Andrey Cordeiro Ferreira[4]
Comentando sobre os protestos na Turquia, Slavoj Zizek disse o seguinte:
“A luta pela interpretação dos protestos não é apenas ‘epistemológica’; a luta dos jornalistas e teóricos sobre o verdadeiro teor dos protestos é também uma luta ‘ontológica’, que diz respeito à coisa em si, que ocorre no centro dos próprios protestos. Há uma batalha acontecendo dentro dos protestos sobre o que eles próprios representam”(…).
Igualmente, no Brasil, há uma grande disputa entre as narrativas sobre o levante popular de 2013. Por razões ideológicas e político-eleitorais, diversos intelectuais participam de uma querela sobre os motivos da revolta de junho de 2013, bem como suas características. Buscaremos contrapor a análise de André Singer, publicada nessa revista, por omitir fatos fundamentais ocorridos entre 2013 e 2014 e, por consequência, induzir o leitor a uma interpretação equivocada dos acontecimentos. Podemos adiantar que a leitura de Singer buscou por todas as maneiras blindar a administração do Partido dos Trabalhadores (PT), perante a enorme insatisfação popular que explodiu no país no que estamos chamando de levante ou insurreição popular. O autor colabora para uma visão idílica do governo petista para fora do país, amparado em números que não encontram fundamento nas condições materiais de existência da classe e dos movimentos sociais e populares em geral.
Em resumo, o modelo petista de governar foi amplamente contestado, não somente pelas elites como tenta incitar o autor, mas principalmente pelos trabalhadores, sobretudo porque continuou – quase literalmente – tanto a política econômica neoliberal de seu antecessor, quanto a locupletação de recursos públicos e/ou benesses ganhas por agentes estatais por exercer funções no interior da administração pública, tal como membros do governo de Fernando Henrique Cardoso do PSDB anteriormente. Ambas administrações perfizeram do país um paraíso dos banqueiros com juros altíssimos, amparados em distribuição de migalhas para os miseráveis, chamadas de bolsa família/bolsa escola – um conjunto de políticas compensatórios de matiz neoliberal mas que são propagandeadas como forma do welfarestate periférico. No caso do mandato petista, o número de pobres contemplados foi consideravelmente ampliado, fato que lhe garantiu, em contrapartida, permanecer no poder por 12 anos, com uma verdadeira indústria do voto miserável, contudo, ao mesmo tempo, os recursos destinados a banqueiros, especuladores e capitalistas em geral foi infinitamente maior. Cabe lembrar que o partido criou uma grande dependência das classes populares dos recursos do Estado e de seus quadros políticos, deveras longe da emancipação almejada pelo pensamento socialista. Enfim, tanto os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), quanto dos petistas Lula da Silva (2003-2010) e de Dilma Rousseff (2011- ) venderam uma imagem para o exterior que não condiz com a realidade brasileira. Singer colabora com essa perspectiva utilizando como objeto os protestos brasileiros, porém negligenciando todo o seu conteúdo reivindicativo e potencial revolucionário.
Além disso, Singer tenta minimizar o significado e alcance dos acontecimentos de 2013, defendendo que não cabia o termo de “primavera brasileira”, exatamente porque o alcance dos protestos não seria o mesmo de situações insurrecionais europeias. O mesmo foi dito por Francisco de Oliveira, que afirmou durante junho de 2013 que não estava acontecendo nada. Assim, podemos dizer que se somou à estratégia da criminalização, à da minimização e invisibilização, que tem acompanhado a política de repressão das revoltas desde o final dos anos 1990.
Na azáfama desesperada de defender o governo, mas procurando se apresentar o mais isento possível, o autor traz diversos dados, na sua maioria absolutamente parciais, imprecisos e eivados da ideologia governista. Um de seus problemas encontra-se na escolha de suas fontes, a saber: 1) notícias dos oligopólios de comunicação de massa e 2) números divulgados pelas forças de repressão (polícias). Tanto uns quanto outros foram os maiores criticados pelos manifestantes, por assumirem postura ao lado dos governantes e capitalistas. Assim, em seu conjunto buscaram sempre jogar exageradamente para baixo o número de manifestantes nas passeatas, induzindo o leitor a crer em números infinitamente menores que os reais nas ruas, além de criticar fortemente as manifestações e principalmente os praticantes das ações diretas, black blocs ou não, que se formaram ao longo de 2013, criminalizando-os. Cabe ressaltar que os jornais conservadores “O Globo” e “Folha de São Paulo”, ambos apoiaram e articularam a ditadura civil-militar no Brasil; ademais, a polícia brasileira é uma das que mais mata no mundo, sobretudo negros e pobres. Outras fontes que embasam as conclusões de Singer são as pesquisas de opinião pública, inclusive uma delas muito ligada aos grandes empresários, “erra” constantemente em pesquisas eleitorais sempre a favor de candidatos conservadores e/ou ocupantes do poder.
Dessa forma, a primeira grande falha é metodológica. A abordagem de Singer compreende os protestos por meio dos olhos dos setores empenhados em reprimir ou combater ideologicamente os mesmos, não problematiza suas fontes nem mesmo leva em consideração os discursos e visões de mundo dos atores nas ruas. E assim uma sociologia de cima, das elites. Portanto, os equívocos do autor começam com a escolha de suas fontes, tratando-as sem uma problematização necessária, tomando em conta seus dados como verdades absolutas. Não obstante como todas elas são conservadoras e alinham-se com o governo federal e/ou com a sua oposição à direita, elas servem muito bem aos interesses do autor.
No bojo dessa discussão, apresentaremos nossa análise a partir de alguns dados oriundos de observação participante realizadas anos de 2013, 2014 e 2015 e de pesquisas sobre os protestos. Focaremos nossa pesquisa na interpretação da ação direta, realizada por diversos coletivos conscientes de suas ações e que reivindicam o socialismo/anarquismo como ideal.
Incrivelmente, Singer tenciona entender a ação direta realizada por coletivos autônomos e populares como se fossem iniciativas de grupos de direita que não querem a “distribuição de renda realizada pelo PT”.
É absolutamente necessário em nome dos diversos partidos autonomistas, anarquistas, marxistas não institucionais e populares insurgentes o resgate da memória do maior movimento popular da história do Brasil. Destarte, temos que desmistificar as teses governistas e valorizar a rebelião popular insurgente dos governados e explorados brasileiros. Em resumo, propomo-nos a contrapor tal visão com uma abordagem, dialética, recuperando as visões de baixo, ou seja, daqueles que construíram as diversas formas de resistência. Pretendemos dar voz aos setores populares mais atuantes do Levante popular de 2013 no Brasil, por meio da tradução de sua ação direta, que deixou perplexa e atônita, num primeiro momento, os governantes de um modo geral, tanto da direita, quanto da esquerda, institucionais.
Na realidade, o que a ação direta explicitou foi como a violência foi em grande medida recolocada como tema político pelo movimento de massas, reabrindo assim o debate entre reforma, revolução e contra-revolução. Assim, o posicionamento de Singer deve ser situado num debate histórico acerca do papel revolucionário da violência, e como os reformistas e contra-revolucionários negaram sistematicamente a sua função, constitutiva das atividades de resistência e da própria formação da autoconsciência em contextos de exercício da dominação pela violência.
É mister destacar que faremos um exercício filosófico, o mais básico de todos, que nenhum jornalista da grande mídia, nem intelectuais da esquerda oficial ou da direita conservadora fizeram, muito menos Singer. Trata-se de perguntar o porquê de parcelas significativas dos manifestantes usarem da violência como forma de fazer política, por meio da ação destrutiva (como quebrar vidraças de agências bancárias após sofrerem ataques policias nas manifestações). Por que não colocaram essa questão? A pesquisa de Singer inexplicavelmente ignorou esses e outros fatos, tornando sua interpretação absolutamente precária e é no nosso entendimento resultante de seu posicionamento institucionalista/estatista que historicamente condenou a resistência popular através da violência como um componente constitutivo da consciência de classe.
1- Do nada ao levante/insurreição: caracterizando os protestos de junho de 2013
As abordagens acima indicadas foram mobilizadas para tentar negar a existência de uma insurreição popular em 2013. Mas a análise governista, da qual Singer é um dos representantes, deu o tom principal dos argumentos: os protestos de junho não teriam tido nenhum significado. Curiosamente, muitos intelectuais da oposição de esquerda ao governo, da esquerda estatista, compartilharam o mesmo pressuposto, de forma que para tais setores não havia ocorrido nada de tão importante. Ou seja, a análise de Singer teve um nexo com o Governo, mas reverberou também sobre as oposições de esquerda e direita, que confluíram na tentativa de negar o acontecimento.
O período entre junho de 2013 e julho de 2014 foi um dos mais importantes da história política e social do Brasil. Nesse intervalo de tempo, presenciamos os maiores protestos da história do país (junho de 2013), caracterizados por enfrentamentos entre manifestantes e policiais em praticamente todas as capitais, em especial no Rio de Janeiro, da onde fizemos nossa observação participante.[5] Em parte, como desdobramento dos protestos de junho, algumas categorias impulsionaram lutas e greves a despeito da orientação das direções sindicais, como garis. (Dezembro de 2013 e fevereiro de 2014), profissionais da educação (agosto de 2013 e junho de 2014) e rodoviários (maio de 2014) fato também relativamente novo na história brasileira. No início de 2014 também testemunhamos os denominados por seus organizadores de “rolezinhos”, realizados por moradores negros, pobres, moradores de favelas e periferias em templos do consumo como shopping centers, a princípio apenas como uma atividade lúdica e de sociabilidade, mas adquirindo conteúdo político depois da repressão e criminalização dos mesmos (para escancarar o por vezes dissimulado apartheid social que os discrimina).
Em função do péssimo serviço dos transportes e da forte repressão policial discriminatória, populares fizeram barricadas, mesmo depois de junho, em seus bairros, favelas, e quebraram trens, ônibus, barcas e metrôs.[6] Até os jogadores da elite do futebol brasileiro cruzaram os braços e protestaram antes, durante e depois das partidas. Vimos, enfim, os oligopólios de comunicação de massa, a polícia, o Estado, todos os governantes, partidos políticos, sindicatos, transportes públicos e os bancos serem amplamente contestados/rechaçados. Um ano sui generis.
Ao examinarmos os acontecimentos de 2013 no Brasil, identificamos a existência de pelo menos cinco interpretações puras e algumas outras que se constituem como amálgama de duas delas ou mais. Das cinco, duas são oficiais, pois caminham dentro dos limites da institucionalidade vigente, são elas: ultraliberal e a governista (petista)[7]. As principais características de suas análises foram clamar pela integridade: do Estado, das instituições, da democracia representativa, enfim, do status quo. Essas partiram dos postulados da democracia minimalista e apresentaram o capitalismo e o Estado, com suas instituições, como último estágio e mais avançado da história da humanidade como impassíveis de alterações. Elas foram amplamente divulgadas pelos oligopólios de comunicação de massa no Brasil. As outras três análises vieram: da esquerda estatista, dos integralistas (fascistas) e dos setores revolucionários.
Podemos resumir as cinco interpretações para o caso específico da Revolta dos governados, da seguinte maneira:
1) governista, divulgada pelos jornalistas e intelectuais simpatizantes do petismo, cujo principal objetivo foi isentar o governo federal de responsabilidade pelo descontentamento popular. Buscou levar a crer que o povo estava nas ruas não contra os pseudos representantes políticos e suas instituições, mas por questões absolutamente laterais que essa mesma intelectualidade focou como essencial. Ainda apresentou a tese de que o movimento popular era manipulado por setores de direita que queriam diminuição de impostos e/ou tomar o poder por meio de golpe militar e tentou induzir fortemente que se tratava de manifestantes de classe média.
2) ultraliberal, propalada por aqueles que aproveitaram a revolta para criticar o governo federal a partir de conjecturas características da teoria de Nozick, Hayek e outros. Buscou encontrar no Levante popular atributos que atendessem aos seus anseios políticos-eleitorais apresentando críticas liberais ao governo federal. As ações diretas foram narradas como desprovidas de qualquer cunho político, somente como ato de “vandalismo”. A figura do vândalo-terrorista infiltrado cumpre o papel da figura espetacular à esquerda, cuja suposição deveria introduzir um suposto inimigo comum, unindo a população contra o governo.
3) reformista, realizada pelos intelectuais ligados aos partidos da esquerda estatista. Esta percebeu o processo de duas formas antagônicas: a) positiva, pois colocou em xeque o governo (situação), aumentando suas possibilidades de um êxito eleitoral; b) negativa, pois o processo não foi dirigido por ela e não atendeu aos seus anseios eleitorais. A penetração social da esquerda estatista é bastante pequena, a verificar pelos seus votos nas últimas eleições nacionais em 2014, quando não alcançou nem 2%.
4) fascista, realizada por grupos minúsculos, com mínima penetração social, advogaram por um golpe militar para “instaurar o integralismo[8]” e igualmente às ultraliberal, governista e reformista criticou os ataques às instituições estatais e do capital.
5) revolucionária, propalada por diversos coletivos combativos e não institucionais – muitos deles adotaram a tática Black Bloc. Foi a grande novidade entre os atores políticos. Negou todos os governos e defendeu o levante como ele foi, com algumas críticas pontuais, mas exaltando a ação direta, a horizontalidade, a combatividade dos manifestantes e o empoderamento popular sem intermediários.
Quadro 1: descritivo das interpretações sobre o Levante e das forças políticas que as compõem.
Interpretações | Forças políticas que a compõem |
Governista | Jornalistas dos oligopólios de comunicação de massa no Brasil; governantes, intelectuais e políticos dos partidos da situação: PT, PMDB, PCdoB, PDT. Sindicalistas ligados às centrais sindicais dirigidas por esses partidos. Empreiteiros, banqueiros, empresários e capitalistas em geral alinhados e apoiadores das ideias liberais implementadas pelo governo federal. |
Ultraliberal (oposição de direita ao governo) | Jornalistas dos oligopólios de comunicação de massa no Brasil; governantes, intelectuais políticos dos partidos da oposição “oficial”: PSDB, DEM, PTB, PPS, PSB. Empreiteiros, banqueiros, empresários e capitalistas em geral alinhados às ideias ultraliberais. |
Esquerda estatista (oposição de esquerda ao governo) | Intelectuais e políticos do PSOL, PSTU, PCB, movimentos sociais e principalmente sindicatos ligados a esses partidos. |
Fascista | Integralistas – grupos minúsculos que reivindicam uma espécie de fascismo com matizes brasileiras e tropicais. |
Revolucionária | Intelectuais e coletivos autônomos, anarquistas, libertários e marxistas não eleitorais/movimentos sociais ligados a luta pela moradia e outros. |
Fonte: elaboração própria.
No escopo deste paper não é possível passar em revista todas as interpretações sobre a revolta no Brasil. Focaremos nas peculiaridades da análise de André Singer, porta-voz da presidência da República sob o governo Lula (2003-2007). Como não poderia deixar de ser, sua interpretação se enquadra perfeitamente no interior da perspectiva governista. Consideramos que Singer sintetiza tanto posicionamentos dos partidos da base do governo, quanto do próprio governo e do Estado. Nesse sentido, criticar a abordagem de Singer é criticar parte do discurso e cultura hegemônica que reprimiu os próprios protestos e que tentou combate-lo politicamente. As demais leituras, ultraliberal e da oposição de esquerda também possuem vários elementos de convergência com tal interpretação, oscilando entre a minimização, a criminalização e a depuração do conteúdo dos protestos.
Entendidas as matrizes interpretativas sobre a Revolta popular de 2013 no Brasil, vamos então aos pontos das nossas polêmicas com a leitura de Singer que sintetiza em grande medida essas três formas de invisibilizar a insurreição.
Em primeiro lugar temos de discutir o estatuto do acontecimento. Nossa tese é que essas manifestações em razão da sua extensão, distribuição geográfica, representatividade, caráter e radicalidade constituem a primeira insurreição/levante de caráter efetivamente nacional na história do Brasil[9]. A percepção da dimensão do acontecimento se refletiu no caráter ambíguo em que os meios de comunicação e organismos repressivos retrataram e administraram a situação, e as tentativas de minimização e mesmo invisibilização. Os termos insurreição e levante têm como característica principal de sua definição a centralidade da ação de coletividades subalternas contra as instituições, classes ou grupos que exercem o poder sobre elas; e em segundo lugar, a centralidade da violência nas suas táticas e formas de ação. Poderíamos fazer a diferenciação de insurreição como sinônimo de levante, do termo “insurreição armada” para situações como a da Comuna de Paris de 1871, quando a ação violenta de massas se desdobra no armamento geral dos setores subalternos em luta. Levante ou movimento semi-insurrecional (se consideramos a insurreição como um movimento necessariamente armado), os protestos de junho de 2013 apresentam várias formas características, como a ação clandestina e as ações violentas contra instituições governamentais, repressivas, representativas e seus símbolos. Podemos considerar Junho como uma insurreição/levante popular em razão: a) de sua composição social, uma vez que ele mobilizou especialmente um setor precarizado da classe trabalhadora, marginalizados e subalternos no sistema político; b) das reivindicações e formas de autoconsciência expressas, que se dirigiram para alguns aspectos centrais do capitalismo brasileiro: a financeirização e o domínio da indústria de transportes, automobilística e comunicacional; c) das modalidades de ação coletiva e dos efeitos que estas produziram, especialmente com a constituição de organizações autônomas voluntariamente marginais em relação ao sistema político. Essa tese se opõe assim à maior parte das interpretações realizadas acerca dos protestos de junho.
Vamos aos fatos. Apesar do esforço de intelectuais ligados ao petismo de negarem a importância do acontecimento ou mesmo o próprio acontecimento, os dados e a teoria nos permitem fazer algumas afirmações categóricas que desmascaram o compromisso dos intelectuais com um governo neoliberal e um regime de acumulação flexível.
Em primeiro lugar devemos observar que os protestos de junho de 2013 não são nem uma surpresa, nem um enigma. Eles se dão no quadro de crise do modelo de desenvolvimento petista, que já vinha se anunciando desde 2004-2006 e que se aprofunda depois de 2011, após um período de “ouro” entre 2007-2010 (com crescimento econômico e expansão do crédito). A figura abaixo mostra a cronologia do antes e do depois. A partir de 2011 temos uma intensificação das mobilizações e greves, que começam no setor de construção civil, especialmente nas grandes obras do PAC, depois uma intensificação e nacionalização em 2012 com uma grande greve da educação e das universidades, com grandes manifestações de massa especialmente no Rio de Janeiro por ocasião da Rio+20; e no ano de 2014 temos uma onda de greves que questionam os sindicatos de Estado e dão surgimentos a diferentes formas de oposição sindical (Comitês e Comandos de Greve paralelos ou controlados pela base), além da generalização da campanha “Não Vai ter Copa” que alcançou uma dimensão popular de massas e que foi reprimida pelo Estado, resultando na prisão e perseguição de ativistas em todo o Brasil.
Todos esses acontecimentos foram gestados pelas contradições produzidas pelo modelo de desenvolvimento petista e pelo avanço do processo de precarização e superexploração no Brasil entre 2008 e 2012, combinadas com os efeitos da crise mundial e das ofensivas contra direitos coletivos. Situando historicamente, podemos dizer que os Governos Lula e Dilma utilizaram instrumentos de contenção dos movimentos sociais. Mas a partir da posse de Dilma esses instrumentos entraram em processo de deterioração. As lutas dos operários das grandes obras, as lutas dos indígenas e depois a grande greve do funcionalismo público e das universidades em 2012; a participação do movimento estudantil na luta contra o Governo Dilma preparou em parte o terreno para as lutas que eclodiriam em 2013. Ao mesmo tempo, esse levante sinaliza para um ciclo internacional de radicalização e massificação das lutas na Grécia, Itália, Espanha, Egito, Tunísia, México, Chile, Colômbia. É um efeito da crise do Estado e do surgimento de novas formas de luta e organização.
O levante de junho foi o resultado de um acúmulo de contradições estruturais. De um lado, um modelo econômico que combinou reformas neoliberais que intensificaram a exploração do trabalho e a precarização dos serviços públicos e da vida. Podemos apontar algumas tendências na economia brasileira: a) a expansão do emprego entre 2007 e 2012 e sua formalização se deram por meio do outsourcing, que cresceu mais de 40%. A formalização do emprego (aqueles regulados pelo Estado por meio da carteira de trabalho) cresceu, mas a formalização não eliminou a precarização, ao contrário, um grande número de trabalhadores formais não tem acesso a diversos direitos trabalhistas; b) a renda e a apropriação do valor no Brasil sofreram poucas alterações. Em 1993 a participação do Trabalho no PIB era de 43%, em 2002 depois dos governos neoliberais era de 33%, e em 2014 depois do modelo petista de desenvolvimento era de 34%, ou seja, o petismo não alterou em nada a apropriação da renda nacional, manteve a apropriação do valor pelo capital.[10] Como veremos, esses dados ajudam a desmistificar várias das afirmações feitas por Singer sobre a natureza de classe dos protestos. Além disso, outro indicador fundamental foram as greves. De 1998 até 2002 há um declínio radical do número de greves. Uma das explicações principais para isso é exatamente o trabalho desmobilizador realizado para favorecer a eleição de Lula como presidente. Entre 2002 e 2008 o número de greves se reduz ao menor patamar desde 1985, período da ditadura civil-militar no Brasil. É sob o efeito da crise mundial de 2008 que o nível de greves volta a se intensificar. O governo Dilma não consegue ter os mesmos instrumentos de contenção e controle, a burocracia sindical falha. Em 2012 temos o maior número de greves desde o ano de 1997 (marco da luta contra as privatizações nos anos 1990). Ao mesmo tempo, segundo estimativas do IPEA, no ano de 2008 eram 6 milhões de terceirizados no Brasil. Em 2011 já eram 11 milhões, ou seja, os terceirizados duplicam de número e sua entrada coincide com uma retomada das greves. Em 2012, DIEESE registrou 873 greves confirmando a tendência de aumento do número de greves verificada a partir de 2008. As informações da série histórica também revelam que o total de greves cadastrado em 2012 é o maior verificado desde 1997. Nesse sentido, as greves foram ocorrendo contra a vontade das direções sindicais e o ano de 2013 foi quando essa tendência de protesto trabalhista e frustração social se cruzaram.
Por outro lado, Singer como todos os demais analistas, incorrem numa abordagem economicista e/ou idealista, abstraindo o contexto material e sociocultural. Os protestos de junho de 2013 eclodiram num contexto muito particular, a da festa da Copa do Mundo que no Brasil ocupa um lugar central na cultura nacional. A ideologia do futebol brasileiro foi um instrumento de Estado, para criar a imagem do brasileiro pacífico, o futebol, juntamente com o carnaval, foram empregados como símbolos da identidade nacional, criando a “ideologia do futebol brasileiro” em que a coesão social se dá no e pelo futebol. Os protestos de junho de 2013 marcam uma profunda ruptura das camadas populares com um aspecto central da cultura dominante (elemento que muitas vezes é usado para explicar a inexistência de ação política, a ideologia do futebol brasileiro foi considerada como “ópio do povo”). Logo, um aspecto fundamental a levar em consideração é que a insurreição de junho de 2013 se deu durante uma festa da cultura nacional brasileira, em que os subalternos deveriam aos olhos das elites encarnar o papel do cidadão da ordem, pacífico e cordial, festejando as vitórias nacionais. Os protestos romperam e negaram tal sistema de dominação simbólica. Além disso, outro aspecto fundamental é que em todas grandes cidades sedes da Copa do Mundo da FIFA ocorreu um processo de gentrificação, combinado com as remoções forçadas e intensificação da repressão. O caso Amarildo[11], foi o primeiro a colocar a centralidade da luta contra o Estado racista e repressor como tema central de um movimento de massas e esteve diretamente relacionado aos efeitos do modelo de desenvolvimento petista.
Os dados acima, apesar de representarem uma pequena parcela dos dados das recentes pesquisas, são suficientes para mostrar o estatuto do acontecimento: um movimento de caráter nacional, que se deu no quadro histórico de insurgências grevistas, crise do sistema de representação do Estado, aprofundamento da superexploração; um movimento que envolveu uma parcela da classe trabalhadora jovem, além de mobilizar vítimas da violência policial e explicitar uma profunda ruptura com elementos da ideologia do futebol brasileiro como um dos principais fundamentos da dominação simbólica. Os protestos de 2013 e seus desdobramentos no ano de 2014 foram assim parte de uma insurreição/levante contra a ordem instituída (fundada na concentração de capitais, apropriação da renda nacional pelo capital, intensificação da superexploração e do Estado penal), da qual o modelo de desenvolvimento petista faz parte.
2 – Classes sociais, atores e ideologias: a luta entre reforma x revolução no terreno da interpretação histórica
O principal objetivo de André Singer foi apresentar o governo do PT como alinhado à esquerda do espectro político brasileiro, elencando elementos palpáveis para o leitor europeu politizado. Destarte, sua interpretação está embebida por um eurocentrismo patente, induzindo o leitor a visualizar os governos petistas como vítimas das articulações de direita, tal como acontece em alguns países do velho continente.[12] Na tentativa de atingir tais objetivos, os erros do autor são muitos e explícitos.
Singer nos dirige ainda a três discussões, muito propaladas pelos governistas e abordadas de forma estéril, a saber: a) a classe social; b) a idade; c) o grau de instrução dos manifestantes. Ao privilegiar essas variáveis de análise, o autor simplesmente se abstém de discutir o essencial, negligenciando absurdamente os sinais emitidos pelos protestos, bem como suas demandas. Ele, pasmem, simplesmente, não descreve as exigências dos populares nas ruas, nem as estruturas organizativas, nem suas relações de polaridade e complementaridade! Muito menos procura entender suas ações e, quando o faz, segue por um caminho absolutamente equivocado, pois está amarrado a uma camisa de força ideológica que busca defender o governo petista acima da tarefa de realizar uma análise séria do levante popular.
Com efeito, todos seus dados e números servem para discutir a classe social dos manifestantes e defender a tese de que eles pertenceriam à “classe média”, portanto, não seriam das camadas populares, mas pessoas que naturalmente estão inseridas no sistema consumista capitalista e que se opunham ao petismo pela direita. Ao dizer que o manifestante é de “classe média” o autor fica com a consciência tranquila para dizer que a suposta base social petista, os trabalhadores, continuam apoiando a sua administração.
Entendemos que se trata de uma discussão absolutamente inútil que tem como resultado principalmente retirar o foco do essencial. Só interessa entrar nesse debate quem não quer discutir exatamente os sinais emitidos pelos manifestantes. Até porque, de acordo com os dados oficiais, ressignificados pelo petismo nos últimos anos, o conceito de classe média não tem mais a ver com a percepção popular, segundo a qual, seria formada por pessoas com confortável modo de vida com casa própria, carro novo etc. Esse conceito foi alterado oficialmente pelo próprio governo de modo a incluir o maior número de pessoas pobres e muito pobres como parte da classe média, criando uma farsa a partir da estatística. Por conseguinte, somente se pode considerar pobre aquele que recebe uma renda per capita inferior a R$140 por mês, equivalente a R$4 por dia. Com esse valor não é possível fazer duas refeições diárias no Brasil. A classe média receberia entre R$291,00 e R$1019 per capita. Nesse contexto, uma empregada doméstica que recebe um salário mínimo no Rio de Janeiro, R$874,75, e tem dois filhos para sustentar é considerada como classe média pelo governo[13], quando na verdade mal consegue se alimentar e alimentar aos seus filhos, muito menos pagar um aluguel, comprar roupas, ir ao cinema etc.
Como consequência dessa primeira e central inferência, o autor pode dizer que a orientação ideológica dos manifestantes era de direita. A lógica é simples: se os manifestantes não são populares e pertencem à classe média, podem ser considerados de direita: “cujo objetivo consistia em fazer retroceder as forças populares que haviam constituído a base de apoio do governo do PT desde 2003”, disse Singer. A base do PT é atualmente formada pela CUT, que se transformou, junto com o partido, em uma central altamente burocratizada que não mobiliza mais os trabalhadores para a conquista de direitos ou mesmo para a manutenção de direitos sociais, mas serve como correia de transmissão das políticas do governo, freando as lutas populares, em acordos espúrios com o Estado e com os capitalistas. Transformou-se, em resumo, naquilo que a literatura chama de sindicato de conciliação.
Além disso, o PT faz “chantagem eleitoral” com os miseráveis, quando afiança o bolsa família para pessoas muito pobres, assegurando assim a fidelidade dos seus votos que (mantém o partido no poder por mais de 11 anos). Todavia, é importante dizer: não se trata de um voto politizado, mas pragmático, utilitarista, que estimula a dependência estatal de uma gama enorme de pessoas, sem a emancipação social deveras almejada. Por outro lado, a mobilização eleitoral se faz através da aliança com partidos de direita tradicionais como o PMDB, mantendo a estrutura clientelista, ou mesmo o Partido Liberal que ocupou a vice-presidência na primeira eleição de Lula.
Em um dado momento, o autor admite que os protestos eram contra todos os partidos políticos, mas em outro, entra em contradição ao dizer que a direita partidária atacou a prefeitura de São Paulo, dirigida pelo PT, bem como o governo federal, também dirigido pelo partido. Ao admitir que os manifestantes estavam contra todos os políticos, como concluir que eram conduzidos pela direita partidária? O próprio governador de São Paulo pertence ao PSDB, oposição oficial ao PT, foi criticado pelas ruas e teve que por decreto aceitar suas demandas e reduzir os preços das passagens de ônibus no estado, assim como Prefeito do PT, Fernando Haddad. Ambos estiveram completamente alinhados durantes os protestos na defesa da repressão e da não redução. Enfim, o autor chega à conclusão excêntrica de que a direita partidária articulou uma luta contra o PT e contra ela própria. Não tem sentido.
Singer analisa como se a direita tivesse vencido à disputa de discursos e pautas das ruas em 2013 e, a partir disso, ataca as manifestações, defendendo o PT. Mas é interessante notar que o discurso da direita partidária procede de modo similar, pois sustenta que a esquerda partidária em geral, incluindo a CUT, seriam responsáveis pela “baderna”. O que ambos concordam é em deslegitimar a revolta popular, revolta esta que, não por acaso, rejeitou os dois como únicas alternativas possíveis e que, exatamente por isso, não poderia ser orquestrada nem pela direita partidária, nem pela esquerda partidária sem cometer a evidente contradição de estar lutando contra si mesma.
Singer admite que propriedades foram destruídas nos protestos. Todavia, estranhamente se exime de explicar quais foram essas propriedades, esvaziando assim todo o conteúdo político das ações. As propriedades atacadas referidas pelo autor foram principalmente: bancos, empresas multinacionais, concessionárias de carros de luxo, postos de pedágio, carros das emissoras de televisão e prédios estatais que representassem a democracia representativa, principalmente, sedes de prefeituras e das casas legislativas dos estados e do Congresso Nacional.
Não podemos entender que essas manifestações sejam de direita por razões simples.
1) não é uma tradição da direita no Brasil enfrentar as polícias e o exército. Muito ao contrário, a direita normalmente está associada às forças de repressão. Em todos os atos houve enfrentamento com a polícia. No ato do dia 20 de junho, os manifestantes do Rio atiraram pedras em soldados e oficiais da Polícia do Exército que estavam na frente do prédio do Comando Militar do Leste na Av. Pres. Vargas.
2) A direita nunca defendeu a destruição de bancos, tampouco criticou o capitalismo.
3) os monopólios de comunicação sempre se constituíram como porta-vozes da direita no Brasil e, portanto, esse setor nunca se colocou veementemente contra a grande mídia a ponto de impedir que seus jornalistas acompanhassem as manifestações. Além disso, vários, carros das emissoras foram queimados nas passeatas. As palavras de ordem contra a mídia foram recorrentes nas passeatas, uma das principais dizia: “A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura” e se desdobraram em ações de massas específicas pela democratização da mídia.
4) Não é tradição da direita no Brasil defender a destruição do parlamento, das prefeituras, mas, exatamente como a esquerda oficial deseja, tomar esses espaços para governar com suas políticas.
5) Os manifestantes se colocaram veementemente contra a Copa no Brasil, inclusive com palavras de ordem dizendo que “abrem mão da copa em favor de investimento em saúde e educação.” Na manifestação de 20 de junho, uma das palavras de ordem que mais ecoou depois do bombardeio de gás lacrimogênio da polícia sobre os manifestantes foi a seguinte: “Não… vai ter copaaaaaaa”. A direita no Brasil sempre foi ufanista e alienada pelo futebol.
6) os ônibus foram outros alvos preferenciais dos manifestantes. Alguns deles foram destruídos em várias cidades. Destruir propriedades privadas nunca foi uma política da direita no Brasil.
7) nos enfrentamentos com a polícia, normalmente a palavra de ordem era: “RE-VO-LU-ÇÃOOOOOO”, Ação Direta, Greve Geral, dentre outras como podemos ver pelo registro fotográficos de diversas passeatas.
8) a direita fascista precisa de líderes, defende uma sociedade hierárquica e autoritária baseada na ordem. As manifestações foram marcadas tanto pela clara negação da existência de líderes quanto de uma estrutura verticalizada direção-base. O rechaço aos partidos políticos constitui-se como a maior evidência disso, bem como a palavra de ordem “fora partidos, fora sindicatos”. A negação dos palanques que no passado serviam para os políticos fazerem campanha eleitoral, bem como a igual repulsa aos carros de som. A horizontalidade, igualdade e a descentralização não só predominaram como se constituíram como as principais marcas dos protestos.
Para coroar o saco de iniquidades, Singer sugere uma tese bastante surreal: o governo petista, como de esquerda, vítima da direita nas ruas, que queria menos impostos e redução do Estado. Esta tese não encontra nenhum amparo no real por vários motivos: 1) a começar pela premissa segundo a qual o governo petista é de esquerda; 2) com mais de 1,5 milhão de pessoas nas ruas somente do Rio de Janeiro, e certamente mais de 3 milhões em todo o Brasil somente no dia 20 de junho, é claro que todos os setores políticos e classes sociais estão representados. Não obstante, cabe uma ressalva para o leitor europeu: não existe um número significativo de pessoas que reivindiquem ser de direita, muito menos fascistas no Brasil[14]; 3) ao defender que o movimento era manipulado pela direita, o autor busca desqualificar a pauta dos manifestantes sem sequer lhe dar voz, uma velha tática dos embates políticos. Segundo Mészáros, Weber ao defender a neutralidade axiológica, buscou desqualificar seus adversários ideológicos sem sequer lhe dar ouvidos. É por esse motivo que Singer se abstém de discutir a pauta do movimento, optando por desqualificá-la a priori, amparando-se em dados duvidosos que apresentam os manifestantes como jovens de direita e de classe média.
Além disso, ao escolher discussões efêmeras, Singer comete seu maior erro: não utilizar nenhuma linha para denunciar a intensa repressão das forças policiais sobre os manifestantes: atirando a queima roupa, ferindo centenas de pessoas, “plantando” provas, infiltrando agentes para criar situações de ataque policial, enfim, agredindo e emboscando pessoas sem terem feito nada, uma truculência absurda, apoiada por todos os governos, tanto pelo petismo e seus aliados, como por sua oposição oficial.
Outro dado trazido pelo autor diz respeito à idade dos manifestantes. Ele conclui que “apenas 2% deles tinham mais de 60 anos”. É importante informar que em todos os protestos a principal marca era o confronto com a polícia. Caro leitor, imagine que as pessoas com mais de 60 anos seriam maioria em protestos com a frequência de pelo menos dois por semana, marcados por intensos confrontos com as forças policiais. Só na cidade do Rio de Janeiro no dia 20 de junho mais de 1,5 milhão de pessoas estavam concentradas no centro da cidade protestando, em meio a uma população total do município de 6,4 milhões, sendo 13 milhões, aproximadamente, para a região metropolitana. Não é pouco significativo. Mas o autor não levou isso em conta. Portanto é óbvio que o número de manifestantes com menos de 60 anos de idade seria infinitamente menor que os entre 18 e 30 anos! Com 1,5 milhão de pessoas nas ruas é claro que todas as classes sociais estão representadas e com números mais expressivo para os mais pobres, extrema maioria. Por fim, o problema aqui é metodológico. Singer manipulou dados absolutamente insignificantes sobre os protestos, como querer dizer que a maioria era jovem, abrindo margem para interpretação de que são inconsequentes. Desnecessário perdermos tempo refutando algumas dessas “evidências” do autor para defender o governo.
Por que tantas discussões enviesadas compostas por insignificâncias? Por que não tratar do relevante? É exatamente porque a premissa de Singer não é a interpretação científica e a descrição dos fatos, mas a defesa de todos os instrumentos ideológicos do petismo de sua política. Por isso que o mesmo não recupera nem se preocupa em descrever o ponto de vista dos manifestantes, nem as contradições internas entre os partidos de esquerda.
Como observadores participantes, percebemos que as principais características da Revolta dos governados durante os meses junho e julho de 2013, e seus desdobramentos, os protestos de 2014, foram marcadas por centenas de protestos de rua e de ação direta. A Revolta dos governados pôs em xeque muitos paradigmas considerados estáveis do cotidiano brasileiro. É pertinente esclarecer ao leitor europeu alguns outros dados descuidados por Singer.
Os protestos começaram por uma grande indignação popular contra os custos dos transportes. Cabe ressaltar que as empresas concessionárias de transportes públicos do país possuem altíssimos lucros à custa dos governantes, inclusive do PT, pois são uns dos maiores financiadores de campanhas eleitorais. Assim, os governos como forma de compensação pelo financiamento das campanhas, autorizam aumentos sucessivos e acima da inflação das passagens de ônibus, trens, metrôs e barcas. Associado a isso, os gastos exorbitantes na preparação para a Copa do Mundo de 2014 com estádios de futebol, num país onde não existe saneamento básico para grande parcela da população, onde nos hospitais públicos falta seringa, maca, médicos e vagas em leitos. Um país marcado pela ausência de uma política séria para a educação, habitação e outros direitos sociais básicos. Os governados se indignaram, construíram barricadas e enfrentaram as forças de repressão nos maiores protestos da história do país, justamente sob o governo do PT, que enquanto tal fez de tudo para acabar com o movimento, seja através da legitimação da forte repressão sobre os manifestantes, seja buscando ideologicamente isentar a sua administração de qualquer responsabilidade sobre o descontentamento popular com amparo de intelectuais alinhados as suas ideias. Assim, criaram a opinião absurda de que os protestos eram oriundos de setores de direita. Criaram literalmente o fantasma do fascismo no país, sob uma interpretação claramente eurocêntrica. Embora, os movimentos fascistas e proto-fascistas avancem na Europa e nos EUA, isso não é uma realidade no Brasil. Tudo isso porque o petismo não pode admitir para fora do país que aqui existe movimento popular e autônomo que rechaça enormemente suas políticas liberais e liberalizantes.
De maneira geral, o Levante colocou em xeque os números divulgados pelos governos e pelos oligopólios de comunicação de massa, segundo os quais o Brasil era praticamente um paraíso do crescimento econômico e do bem-estar, com pobres e miseráveis vivendo muito bem assistidos com o bolsa-família. Depois da revolta, podemos, legitimamente, nos perguntar se todos esses dados frios se baseavam numa descrição séria da realidade.
Os oligopólios de comunicação de massa, por sua vez, assumiram seu papel histórico e defenderam o Estado, as instituições e as grandes empresas buscando deslegitimar as ações diretas dos insurgentes mais combativos, apoiando e até exigindo dos governantes a criminalização dos revoltosos. Os políticos, independente das suas diferentes colorações ideológicas, atenderam, prontamente e muito satisfeitos, em clara unidade, reprimindo com toda força o movimento por meio da polícia e do judiciário, tornando os custos da ação coletiva altíssimos.
Singer também se esqueceu de relatar que os partidários com a bandeira do PT foram amplamente rechaçados nas maiores manifestações da história brasileira. Os partidários do PSDB e de outros partidos de direita não tiveram a coragem de levar suas bandeiras, pois também seriam amplamente rechaçados, talvez até mais, como o foi o governador de São Paulo, que inclusive já foi candidato à presidência da república.
Devemos ainda estabelecer mais um ponto de fundamental importância para diferenciar nossa análise da de Singer. É um acinte a consideração do autor de que o movimento tinha ligação com a direita, ou um cunho fascista. O movimento teve um forte cunho insurgente e foi muito difícil a sua construção realizada pelos diversos movimentos sociais autônomos no Brasil que não fazem mais parte, há muito, do horizonte do PT, que se encastelou no poder e usufrui das benesses e por consequência sofre dos problemas de corrupção endêmica ligados a ele. [15]
Apesar de tudo, em janeiro e fevereiro de 2015, as manifestações foram retomadas pelos coletivos autônomos, e os petistas estiveram em todas as partes tentando impedi-las. Isso demonstra como o PT virou um partido que oblitera a luta, quando no passado ajudou a construir. A lógica de que o poder corrompe serve perfeitamente para o partido. Aliás, a história de um partido de origem socialista que abandona suas ideias e vira administrador do capital não é nova no mundo, muito menos de intelectuais ligados a esses partidos que ocupando cargos no Estado abandonam sua independência intelectual e viram propagandistas das políticas do partido. Fato é que o PT abandonou suas origens e se transformou apenas em mais um dentre outros diversos pelo mundo afora. Hoje, o governo Dilma monta um ministério dos sonhos do seu partido opositor oficial tipicamente adepto das políticas neoclássicas, o PSDB.
Por que os partidos de esquerda dizem que se trata de manifestações de direita? Porque um dos coros mais fortes cantados nas ruas foram justamente contra eles. A maioria dizia: “Sem partido, sem partido”. Isso não é novo. Já vem acontecendo há algum tempo. Trata-se da crise de representação não só da esquerda oficial como de todos os partidos. Ao gritar “sem partidos”, eles não almejam um novo partido de direita. Seria até incongruente. Na verdade, trata-se de uma rejeição a todos os partidos e consequentemente a todas as instituições da democracia, chamada outrora pelos militantes da esquerda estatista, de burguesa, mas hoje estão tão ligados a elas que fazem sua defesa, junto com o governo, e os próprios e verdadeiros partidos de direita no Brasil, que não são poucos. Recentemente, a população elegeu um operário e depois uma mulher para o maior cargo político do Brasil, ambos do PT, pois além do simbolismo, se apresentavam como oposição ao sistema. A despeito dessas simbologias, o país continuou o paraíso dos banqueiros.[16] Algumas das principais canções propaladas, sobretudo pelos setores revolucionários eram: a) “Eleição é farsa não muda nada não, o povo organizado vai fazer revolução”; b) “É barricada, greve geral, ação direta que derruba o capital”; c) “Fora Cabral, Dilma, o Estado e o capital”[17]
Uma das grandes novidades desse movimento insurgente vivido pelo país em 2013 foi não ter sido dirigido por partidos, nem sindicatos. Por isso cabe a eles desacreditá-los e chamá-los de direita e até de fascistas como ouvimos. Esses partidos e sindicatos, especialmente o PT e CUT, estiveram à frente de uma série de reformas neoliberais e de ataques contra a classe trabalhadora. Esse sentimento anti-burocrático esteve presente nas greves dos operários da construção civil em 2011, em 2012 e depois em 2013. Logo, a tentativa de criar uma associação simplista, afirmando que os protestos seriam da “classe média” e por isso de “direita”, é uma tentativa artificial que ignora os dados, pois tanto em junho os manifestantes eram na sua grande maioria de assalariados de renda baixa, quanto as greves explicitaram a mesma contradição e lançaram um forte questionamento ao petismo e ao seu braço sindical, o sindicalismo cutista corporativista. Logo, ao contrário do que afirma Singer, a composição social dos protestos de junho era complexa, em termos ocupacionais e de renda, mas ela refletiu as contradições históricas da sociedade brasileira no “lulismo”. Além disso, quando observamos as formas organizativas e as demandas que surgiram nos protestos, todas elas mostram uma articulação entre a defesa da ação direta, do protagonismo popular, com demandas de caráter anti-militarita, anti-neoliberal e anticlerical.
Um absurdo erro de diagnóstico que só demonstra o quanto esses setores não sabem ler a história do Brasil e auxilia a explicar porque possuem cada vez mais menos legitimidade no seio da sociedade.
É importante dar a advertência ao leitor não familiarizado com o Brasil, que o PT foi formado por uma aliança entre comunistas do antigo PCB que tinham ou condenado a guerrilha de resistência à ditadura ou participado e renegado a mesma, com setores de um republicanismo católico influenciado pela teologia da libertação. Essa aliança deu ao partido uma típica feição social-democrata, que reuniu marxistas e republicanos num pacto de conquista pacífica do Estado e de condenação do uso da violência revolucionária. Mas é importante observar que a violência que é negada é a violência como estratégia de ação de classe, uma vez que o uso da violência pelo aparelho de Estado burguês é completamente naturalizado, vide que o PT ocupou durante muitos anos o Ministério da Defesa com José Genuíno, e de ter criado a Força Nacional de Segurança usada para reprimir protestos camponeses e os protestos durante os anos de 2013-2014. Além disso, ao longo dos anos 1980 o PT e sua Central Sindical, a CUT, aprovaram em seus congressos e iniciaram um novo tipo de sindicalismo, chamado de “cidadão”, que condenava as greves e iniciou uma prática generalizada de conciliação entre patrões e empregados. Assim, o PT e CUT não somente se colocam numa linhagem histórica social-democrata que nega o uso da violência para fins políticos revolucionários, como tinha interesses muito particulares em impedir o advento de greves para não desestabilizar o próprio governo. Assim, essa dupla base, subjetiva e objetiva, condicionou a formação da interpretação governista. Por outro lado, durante o ano de 2013 a violência foi re-significada pelos manifestantes: eles questionaram o monopólio do uso legítimo da violência pelo Estado ao empregarem o conceito de auto-defesa, retomando assim os elementos clássicos do direito de insurreição e insubordinação contra a tirania que estão presentes mesmo em autores liberais clássicos como Locke, mas fortemente justificados no pensamento anarquista em Bakunin, Mahkno e Kropotkin.
O fenômeno do anarquismo e do Black Bloc no Brasil não foi apenas, então, uma prática de resistência centrada na violência. A insurreição/levante de 2013 reabriu um debate sobre o caráter do projeto social-democrata e seu pacifismo violento (centrada na violência estrutural do Estado contra os governados e marginalizados) e uma violência pacificista (centrada no uso da violência situacional para defender os governados e marginalizados da violência estrutural, buscando a desmilitarização da sociedade). Logo, a abordagem de Singer se coloca no campo mais amplo dos pacifistas que querem obter a paz invisibilizando a guerra que já ocorre contra os grupos subalternos; a prática de resistência e reflexão que surgiu das ruas ao contrário, parte do fato de que a violência existe, ela já está em curso e que os governados podem usar da violência para sua auto-defesa contra a tirania. Essa reflexão se liga a toda uma história da luta dos anarquistas, dos socialistas revolucionários, dos revolucionários anti-coloniais que tentaram exatamente mostrar que sob a aparente paz capitalista reina a guerra. Singer, ao representar a ordem, tenta tornar a guerra invisível, criando a imagem idílica de um Governo legitimado pelos trabalhadores e apenas questionado pelas elites. Mas a insurreição de 2013 mostrou ao mundo o que eles queriam tornar invisível: a opressão e a resistência, a luta de classes e a insurgência, se aprofundam.
CONCLUSÃO
De maneira geral o levante deverá ficar na história como aquele que teve como alvos principais os símbolos do Estado, do capitalismo, da democracia representativa e dos oligopólios de comunicação de massa.[18] Participar da Revolta dos governados passou a ser um ato de extrema coragem, pois os riscos de apanhar da polícia, levar um tiro de bala de borracha, ser intoxicado pelo gás lacrimogênio ou de pimenta, ser detido, preso, identificado, processado e perseguido pelo Estado passou a ser muito grande. Portanto, os altos custos para sustentação da ação coletiva de longo prazo foram um dos diversos fatores que colaboraram para o fim do movimento.
Para que a revolta fosse calada, para que o levante popular fosse contido, uma enorme onda de repressão e perseguições políticas foi posta em prática pelo governo petista e seus aliados nos estados. As pessoas não saíram das ruas naturalmente. Como em outros períodos de nossa história, a insurgência popular foi reprimida com violência pelo Estado. Alguns foram escolhidos para serem punidos exemplarmente, e uma série de prisões de supostos líderes investigados, em todo o país, se seguiu à detenção arbitrária em massa nas ruas. No ano da Copa do Mundo, o discurso midiático abriu espaço através da instauração do pânico para a associação dos ativistas e movimentos sociais tratados como terroristas e quadrilhas armadas, em uma crescente criminalização que visa impedir a própria possibilidade de auto-organização e livre associação da sociedade. Todo movimento não institucionalizado e sem cunho eleitoral é hoje potencialmente uma quadrilha na visão governista. E os anarquistas, autonomistas e marxistas não-institucionais são, sem dúvida, aqueles considerados os mais perigosos, e mantidos sob vigilância constante.
Por fim, o governo petista e seus intelectuais, se seguissem uma receita reformista clássica, ao invés de tratar a rebelião popular como um caso de polícia, teriam ouvido as vozes das ruas, aproveitado a ruptura da apatia da população para a criação de novos direitos com vistas a diminuir as extremas desigualdades do país, a falta de seringas e leitos em hospitais públicos, a falta de saneamento básico, com água tratada, para número considerável de seus habitantes, ampliar e melhorar escolas públicas, bem como os salários de seus professores e sobretudo atender as reivindicações que impulsionaram todo o movimento: a tarifa zero nos transportes, entendendo o direito de ir e vir como universal, obstaculizado pelo preço absurdo das passagens no Brasil. O governo petista poderia aproveitar a crítica à democracia representativa – que não representa nada mais que os banqueiros e capitalistas em geral – para impulsionar a auto-gestão que expressem diretamente a vontade popular. Além disso, poderia atender as demandas dos protestos pela democratização da comunicação de massa no país e pôr um freio no sistema de capital financeiro despótico. Poderia atender a demanda pelo fim das polícias militares que mais matam no mundo. Mas o governo do PT não avançou nessa direção pois não está localizado nem mesmo no espectro de um reformismo clássico. Seu compromisso com o neoliberalismo e a estrutura de poder conservadora no Brasil explica a reação dos seus intelectuais.
A única coisa que não podemos permitir é a tentativa de desqualificar o Levante de um povo oprimido por séculos, sem sequer apresentar suas demandas. Sabemos, entretanto, que o PT não pode cortar o galho no qual está sentado. Que a democracia representativa financiada pelos detentores do grande capital não pode operar internamente a ruptura com seus próprios pressupostos. Certo é que o governo não poderia atender de fato as reivindicações das ruas em 2013, pois elas apontavam para o totalmente fora deste sistema, para o inegociável, para a possibilidade de um outro modo de vida. Nenhuma reforma neste sistema pode dar conta da sua própria destruição, isso não significa que tal destruição não seja possível. A auto-gestão popular só poderá ser fruto da própria organização popular. O problema é que os atores no jogo da política representativa só postulam discursivamente eles mesmos como inimigos possíveis, enquanto 2013 apontou para a possibilidade de ruptura no jogo. Assim, o PT culpará sempre setores da direita partidária mais ou menos vinculados, ainda que espetacularmente, aos valores de seus inimigos nas urnas. E, por seu turno, a direita culpará sempre setores da esquerda partidária ou institucional, mais ou menos vinculados, ainda que espetacularmente, aos interesses de seus inimigos nas urnas. Mas a vida política de uma sociedade não se reduz a comprar candidatos em um supermercado eleitoral. E, de fato, eles sabem disso. Por isso, enquanto criam inimigos espetaculares e simulacros de si mesmos nos discursos, combatem realmente, materialmente, aqueles que são ameaças concretas por meio da criminalização geral e punição exemplar. É preciso parecer, nos discursos, que estes não existem, mas fazer nas ações o possível para que deixem de existir, pois suas existências apontam para a morte do sistema e daqueles que vivem, de um modo ou de outro, da sua manutenção.
O Levante sob nossa perspectiva deve ficar marcado como uma tentativa popular de auto-instituição através da ação direta. Era necessário escrever essas palavras para o exigente leitor da New Left Review ter acesso a uma outra interpretação sobre a Revolta popular no Brasil dos anos de 2013/14. Estamos abertos ao debate.[19]
[1] Resposta ao texto de SINGER. André. (2014) Rebellion in Brazil. New Left Review, January-february 2014, vol.85, pp 19-37.
[2] Prof. do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ. Coordenador do OTAL (Observatório do Trabalho na América Latina): www.otal.ifcs.ufrj.br. Queremos agradecer aos comentários, correções e colaborações de Luciana Simas e Rômulo Castro que muito acrescentaram ao texto, não obstante, como de praxis, as responsabilidades por possíveis erros são dos autores.
[3] Profa. do Departamento de Filosofia e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UERJ. É uma das 23 ativistas processadas pelo governo do Estado do Rio de Janeiro por participar dos protestos em 2013/14.
[4] Prof. do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade – CPDA/UFRRJ. Coordenador o NEP (Núcleo de Estudos do Poder – CPDA/UFRRJ).
[5] Como o Brasil é um país continental e as manifestações aconteceram simultaneamente em quase todos os estados da federação, foi impossível a qualquer observador participante acompanha-las em tempo real. Portanto, o que segue são reflexões sobre a Revolta dos governados na cidade do Rio de Janeiro, embora os motivos, o modus operandi e as características tenham sido muito similares em todo o país pelo que podemos constatar a partir do midiativismo. Destaca-se, aliás, que oligopólios de comunicação de massa não podem servir como fontes seguras para movimentos populares no Brasil.
[6] É certo que a favela sempre se levantou mesmo antes de junho de 2013, e é importante ressaltar isso. Populares e trabalhadores com frequência quebram trens quando estes param justamente no horário da volta para casa e queimam ônibus quando a polícia mata crianças e trabalhadores nas comunidades. Isso não passa a ocorrer posteriormente ao levante, já ocorria, mesmo que os grandes veículos de comunicação não noticiassem ou dissessem que se tratavam de ações orquestradas por traficantes. Ninguém precisou ensinar a revolta para os mais excluídos. Mas a potência de junho foi a do encontro da visibilidade do asfalto, onde as balas são, na maioria das vezes, de borracha, com uma certa democratização da violência de Estado para setores da população que não estavam acostumados a sofrê-la.
[7] Da nossa parte, não lemos o governo do partido dos trabalhadores como parte da esquerda estatista, pois através de suas políticas públicas implementa um programa muito similar com o outro partido neoliberal que o antecedeu no poder, o PSDB, de Fernando Henrique Cardoso. Ambos partidos, embora se apresentem como oposições um ao outro, implementam uma política muito semelhante em todos os sentidos. O governo do PT portanto não adota políticas que possam ser enquadradas como de esquerda, como ampliar direitos sociais, criar estatais ou reverter as privatizações, fazer reforma agrária, fazer uma política clara de distribuição de renda, taxando mais os mais ricos. Não obstante, também não possamos enquadrá-lo como ultraliberal, pois embora tenha começado um processo de privatização dos hospitais universitários, ainda não privatizou os hospitais públicos, nem as escolas e universidades públicas, conquanto estejam muito precarizados.
[8] Integralismo foi um movimento liderado por Plínio Salgado, nos anos 1930 no Brasil, e advogava muitos dos princípios do fascismo europeu.
[9] A abordagem aqui proposta, de empregar a antropologia política para análise de insurreições, revoluções e movimentos sociais não é nova. Ela foi formulada de forma clara por Victor Turner em seu artigo “Hidalgo: a história como drama social”, que analise o ciclo de insurreições que culminaram na independência do México.
[10] Os dados aqui citados estão contidos nos Relatórios de Pesquisa do Núcleo de Estudos do Poder sobre os protestos de junho (ver nepcpda.wordpress). Essa pesquisa foi realizada e contém uma amostra de 300 questionários respondidos por participantes das manifestações e dados socioeconômicos obtidos por meio da análise do sistema de contas nacionais do IBGE.
[11] O caso Amarildo refere-se à tortura, assassinato e desaparecimento de Amarildo, morador da favela da Rocinha, por policiais da PMRJ em julho de 2015. Ocorrido pouco após o ápice dos protestos, esse caso reacendeu a revolta popular e resultou numa série de ações contra o governo do Estado e a violência militar. A palavra de Ordem “Cabral: Bandido! Cadê o Amarildo” foi difundida e a intensificação das mobilizações de rua, o acampamento na frente da casa do Governador Sérgio Cabral, produziu um resultado inédito: a prisão e julgamento de policiais envolvidos na execução de um morador de favela. Atualmente, os policiais já foram soltos pela Justiça.
[12] Embora também na Europa possamos considerar que a situação é bem mais complexa, a dicotomia reducionista entre social-democracia e ultraliberalismo tenta impor-se mundialmente enquanto as únicas alternativas políticas possíveis.
[13] Segue explicação retirada do próprio site do governo: “De modo a desenvolver uma definição para a nova classe média, a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE/PR) instituiu, por meio da Portaria Ministerial nº 61, de 27 de setembro de 2011, um Grupo de Trabalho segundo o qual “uma pessoa é estruturalmente pobre quando, dadas as características dos membros economicamente ativos da família, a renda do trabalho predita, somada às transferências e rendimentos de ativos efetivamente recebidos, leva a uma renda per capita inferior a R$140 por mês.” Sob essa perspectiva, uma pessoa não pobre vive em uma família com renda per capita superior a R$140 por mês.” Fonte disponível em: http://www.sae.gov.br/wp-content/uploads/Relat%C3%B3rio-Defini%C3%A7%C3%A3o-da-Classe-M%C3%A9dia-no-Brasil1.pdf
[14] Com exceção evidentemente para os poucos e pequenos bairros da alta elite.
[15] As administrações do PT são acusadas no Brasil atualmente pelos oligopólios de comunicação de massa e por sua oposição oficial por corrupção ativa de vários de seus quadros. Dois dos principais deles encontram-se presos por corrupção ativa. Trata-se de José Dirceu, ex presidente do partido e ministro do governo Lula, e José Genoíno, ex líder do PT na Câmara. Atualmente, em fevereiro de 2015, a polícia federal investiga a corrupção na Petrobrás dirigida pelo governo federal. Em depoimento em juízo, após delação premiada, o ex-gerente executivo da Petrobrás, Pedro Barusco, detalhou a corrupção na companhia e afirmou que o PT recebeu entre 2003 e 2013 de US$ 150 a US$ 200 milhões de propina.
[16] É necessário ampliar o nosso foco. Essa crítica à democracia representativa vem ganhando força no mundo pela esquerda, desde pelo menos o levante de Chiapas (1994) passando pela rebelião de Seattle em 1999, composta, sobretudo, por muitos novos movimentos sociais, todos às margens dos partidos, inclusive de esquerda, e em grande maioria autonomistas. Isso passou por Gênova (2001), Argentina (2001) Bolívia (2003) Equador (2003) Paris (2011), Grécia (2011-2012) Espanha e Turquia (2013) e os movimentos de occupy, começado em Wall Street (2011). Isso nada mais é do que o resultado da chegada de partidos de esquerda ao poder sem produzir mudanças significativas, mas, para além disso, na maioria das vezes foram justamente esses partidos que implementaram e/ou aprofundaram as políticas liberais. Além do mais, os partidos de esquerda possuem uma organização extremamente hierárquica e consequentemente autoritária. Portanto, o movimento anti-partido, que significa antirepresentação não é novo, nem genuinamente brasileiro.
[17] Cabral era o governador do estado do Rio de Janeiro em 2013, Dilma é a atual presidente da República.
[18] A Artigo 19 fez um levantamento sobre os protestos no ano de 2013 chegando as seguintes conclusões: Entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2013 ocorreram: 691 protestos; 15 manifestações com mais de 50 mil pessoas; 16 manifestações com mais de 10 feridos; 10 usos de armas de fogo; 8 mortes; 837 feridos; 2608 pessoas detidas; 117 jornalistas agredidos ou feridos; 10 jornalistas detidos. : Relatório Artigo 19 “Protestos no Brasil 2013” disponível em: http://www.artigo19.org/protestos/Protestos_no_Brasil_2013.pdf acessado em 08 de setembro de 2014.
[19] Indicamos alguns dos diversos documentários sobre os protestos no Brasil: Documentário de Carlos Pronzato: “A partir de agora – as jornadas de junho no Brasil” ano: 2013; duração: 80 minutos. Documentário: “Domínio Público” disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dKVjbopUTRs acessado em 26 de julho de 2014.
Documentário: “Protesto Passe Livre Brasil: Veja o que você não verá na televisão!” disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xsBff36o-Nk acessado em 26 de julho de 2014. Documentário: “Manifestação e Ocupação do Congresso Nacional em 17 de junho de 2013” disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0ox56RlZOuI acessado em 26 de julho de 2014. Documentário: “Cenas exclusivas do confronto entre Black Bloc e PMERJ e de agressão a jornalistas em 27/08/2013 na cidade do Rio de Janeiro” disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tsIAC99DM10 acessado em 26 de julho de 2014. Documentário: “Cenas do protesto contra a Rede Globo em São Paulo” disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wxg1kbhp4Eo acessado em 26 de julho de 2014.