“UM LUGAR DE FALA DECOLONIAL, ANTIRRACISTA E LIBERTÁRIO”

“UM LUGAR DE FALA DECOLONIAL, ANTIRRACISTA E LIBERTÁRIO”

Aula dia 18 de agosto de 2020[1]

Autor: Wallace de Moraes (IFCS/UFRJ)

Edição/transcrição: Cello Latini

Todo conhecimento é produzido a partir de uma perspectiva e de uma experiência de vida. A Europa, a partir da conquista das Américas, desde o final do século XV e, no Brasil, a partir de 1500, se colocou como centro mundial – que ela não era até então. Ao se colocar como centro mundial, a Europa achou que poderia produzir teoria para todos, e se colocava como o objetivo que todos os povos e culturas deveriam atingir, como o suprassumo do desenvolvimento humano, e aqueles considerados bárbaros (negros, indígenas, asiáticos, e todos que eram diferentes) deveriam chegar e trilhar pelo caminho decidido pelos Europeus. Quando os Europeus não estão no comando, como quando há negros governando em África, esses negros estão governando de acordo com o modelo moderno, colonialista, e que estabeleceu a colonialidade do poder. Todo conhecimento é produzido por um lugar de fala. Enquanto professor negro, com origem popular – ou seja, fui criado em Irajá, no subúrbio do Rio de Janeiro, sou oriundo de duas famílias de Vigário Geral e até os meus 9 anos de idade eu vivi em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Essa foi a maneira como eu me forjei. Muitos dos meus professores diziam que “Não, você tem que entender o autor europeu, tem que ter uma referência européia, tem que ter uma referência dos Estados Unidos, tem que ter uma referência fora, você não pode se referenciar aqui”. Essa maneira de interpretar o mundo é colonizada, significa a colonialidade do saber. Esse é um ponto importante para entendermos o lugar de fala.

            Essa ideia de raça foi criada, é importante dizer, com a chegada dos Europeus aqui. Antes da conquista das Américas, o europeu não se reconhecia enquanto branco, o africano não se reconhecia enquanto negro, o indígena não se reconhecia enquanto indígena, até porque tinham vários povos indígenas aqui, assim como há vários povos negros, africanos, e como há vários povos brancos na Europa, diferentes culturas. Então, a ideia de raça foi criada nesse momento com o objetivo muito claro de subordinar negros e indígenas aos brancos europeus, especialmente aos brancos europeus da Europa Ocidental. Por isso, toda teoria que vigora em praticamente todas as universidades no campo das Ciências Humanas foi formulada por cinco países: Estados Unidos, França, Alemanha, Inglaterra e Itália – Itália em menor medida.

            Nossos objetivos epistemológicos aqui são preencher algumas lacunas nessa universidade branca, ocidentalizada e com currículo eurocentrado. Esse é o ponto. Para além disso, temos como ponto também, na perspectiva epistemológica, a colaboração para criar uma epistemologia decolonial e libertária. O que é decolonial? Primeiro, temos que entender o colonialismo, que se iniciou com a conquista das Américas e terminou com a independência dos países latino-americanos no século XIX, alguns no século XX, e com a independência de países na África no século XX. O colonialismo foi um projeto social, civilizacional, um projeto político, econômico e cultural em que a Europa se estabelecia como grande modelo econômico, político, de Estado. A cultura, a música, a religião, a forma militarista de organizar, as prisões, tudo isso veio importado da Europa. Quando se chegava aqui, em países latino-americanos, logo se construía uma igreja e uma prisão e um lugar político, onde se organizada tudo isso.

A questão maior do Estado era a subordinação de negros e indígenas, tratados como não-humano. Gosto de usar uma frase do Fanon: se tratavam como “quintessência do mal” a religião afro, a cultura afro, os costumes. Não bastava, dizia Fanon, bater, humilhar, dar tapa na cara do colonizado: era necessário transformar a sua cultura na quintessência do mal. Esse foi o princípio do colonialismo. Com o fim oficial do colonialismo, o que ocorreu na América Latina e em África? Os princípios colonialistas permaneceram. Essa permanência gerou a colonialidade do poder – o conceito de colonialidade do poder foi criado por Aníbal Quijano e depois tratado pela rede modernidade-colonialidade por diversos autores. O eixo fundamental de tudo isso é a ideia de raça e o racismo. Hoje, em todas as sociedades latino-americanas e em África, o racismo ainda permanece. A luta contra esse racismo é nosso dever.

Quando os europeus estabelecem uma modernidade, com o colonialismo, os princípios dessa modernidade permanecem até após o fim do colonialismo. Esses princípios são a ideia do racismo, e por isso somos antirracistas; a ideia do patriarcalismo, no sentido do domínio do homem branco proprietário, e aí também temos unidos os princípios do racismo, do capitalismo e do patriarcalismo, que guiam essa colonialidade do poder, do ser, do saber, da natureza – e por isso somos antipatriarcais e anticapitalistas; a ideia de autoritarismo, baseada, sobretudo, no Estado, e que também é homofóbico. Então, o padrão que se estabeleceu pra cá e para o mundo inteiro, guiado pela igreja e pelo Estado europeu, tendo os militares como ponta de lança desse processo, sustentaram todo o modelo capitalista de produção, patriarcal, racista, heteronormativo, cisnormativo e autoritário, baseado nas prisões e nas punições. É contra tudo isso que estamos aqui, com construção, pensamento e filosofia, e muito amor. Usarei até um termo que muitos confundem como cristão: o amor ao próximo, ao outro, ao meu colega, sempre em perspectiva antirracista, antipatriarcal, e por aí vai.

Dito isso, no meu curso eu vou privilegiar autores negros, autoras negras e indígenas, e também brancos revolucionários que contribuam, em alguma medida, para a luta antirracista, antipatriarcal, anticapitalista, anti-estatal, anti-estadolátrica. É nesse sentido que entra o conceito do anarquismo. Por isso, somos decoloniais e libertários. Libertários porque entendemos que o Estado cumpriu um papel histórico de escravizar, menosprezar, humilhar e matar os nossos ancestrais. O Estado continua cumprindo esse papel até hoje, independentemente do governo que esteja no poder. Continua o exército nas ruas ocupando favelas e matando negro e pobre, independente do governo. Esse padrão de assassinato, colonialista, da colonialidade do poder, permanece nos dias atuais quando vemos os índices de assassinato de negros, pobres e indígenas, e, sobretudo, a tomada das terras indígenas, isso nos dói demais o coração quando vemos que as terras indígenas estão sendo tomadas não somente pelo Estado, como também pelo agronegócio.

Apresentarei teorias de autores como Frantz Fanon, Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Emma Goldman, Bakunin, Kropotkin, e outros autores que acho que possam contribuir na defesa de nossa liberdade. Quer fazer aqui essa simbiose entre a cultura indígena, a cultura negra, uma cultura popular, anarquista, trabalhadora, revolucionária. Essas três epistemologias sofreram o que Boaventura de Souza Santos chama de epistemicídio, isto é, destruir, humilhar, não adotar essas perspectivas nas universidades. Eu entrei na universidade, foi muito difícil, e quer cumprir agora um papel de desconstrução teórica, epistemológica, ocidentalizada, que reforça a estadolatria. Nenhum teórico deles consegue pensar além do Estado, e foi o Estado que nos escravizou, que nos prendeu, que nos mata, persegue, e que nos monitora até hoje. Mas a nossa universidade não consegue pensar para além disso. Por isso, a luta anarquista pode contribuir muito para a luta antirracista nesse país. É nesse sentido que quero essa contribuição. Muitos teóricos já fizeram isso: Lorenzo Kom’boa, ex-Pantera Negra que escreveu um livro sobre anarquismo Negro, o Sam Mbah que falou do anarquismo na África como consequência do comunalismo africano

O anarquismo nada mais é do que a produção teórica, epistemológica, filosófica, um modo de vida que já é realizado por africanos, indígenas e trabalhadores no mundo inteiro, inclusive por brancos oprimidos, sobretudo pelas bruxas que morreram aos milhares na Europa, pois não seguiam uma ideologia igrejista e estatal, acusadas de hereges, e trabalhadores brancos exterminados. A cadeira elétrica foi inaugurada para os anarquistas, porque estavam contra todos os princípios da modernidade.

Se há algo bom para nós é o princípio da liberdade, que nos encanta, é a liberdade que nós almejamos, e essa liberdade só pode ser concretizada com igualdade. Daí essa junção. Para os povos que foram oprimidos e escravizados, não há conceito melhor do que liberdade, filosoficamente construído pelos anarquistas: a minha liberdade é a extensão da sua ao infinito, ou a sua liberdade estende a minha ao infinito – como Bakunin falou. Só existe liberdade quando todos de uma sociedade estejam livres: se houver um único escravo, não existe liberdade. Então, é isso: busca da liberdade, com amor, com felicidade, com horizontalidade, com luta, ação direta, sem hierarquias, com circularidade. É isso que queremos.

Referências

BAKUNIN, M. (2006) Textos anarquistas; seleção e notas de Daniel Guérin. Porto Alegre: L&PM, pp: 108-131; 154-157.

SANTOS, Boaventura de Souza (2011). Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação socialSão Paulo: Boitempo [1ª ed. revista].

DE MORAES, Wallace S. Necro-racista-Estado – diálogo entre as perspectivas decolonial e libertária. Ficará disponível em breve.

_________________ UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL LIBERTÁRIA CONTRA AS NECROFILIAS COLONIALISTAS OUTROCIDAS. Ficará disponível em breve.

FANON, Frantz (1968). Os condenados da terra. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira.

______________ (2008). Pele negra, mascaras brancas. Salvador: EDUFBA

Goldman, Emma (1910). Anarchism and other essays. New York: Mother Earth Publishing Association.

GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira in “Primavera para as rosas negras”. Diáspora africana: editora Filhos da África, cap. 2.

______________. A categoria político-cultural da amefricanidade in “Primavera para as rosas negras”. Diáspora africana: editora Filhos da África, cap. 36.

KROPOTKIN, P. (2005), Palavras de um revoltado. São Paulo: editora Imaginário.

MBAH, Sam & IGARIWEY, I. E. (2019). Anarquismo africano – a história de um movimento. Rio de Janeiro: Rizoma.

MBEMBE, Achile (2018). Necropolítica – biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N1 edições.

NASCIMENTO, Abdias (1979). O Quilombismo. São Paulo: editora Perspectiva. Documento 7 do livro.

QUIJANO, Aniíbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Várias edições disponível na web.


[1] Edição/transcrição de Cello Latini do vídeo/aula de Wallace de Moraes no canal do CPDEL do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=szRi9RIGHAo&t=14s

Comments are closed.

line
footer
Tecnologia WordPress | Elaborado por Antônio Correia