HISTORICÍDIO E AS NECROFILIAS COLONIALISTAS OUTROCIDAS – UMA CRÍTICA DECOLONIAL LIBERTÁRIA

HISTORICÍDIO E AS NECROFILIAS COLONIALISTAS OUTROCIDAS – UMA CRÍTICA DECOLONIAL LIBERTÁRIA

Wallace de Moraes (IFCS/UFRJ)

A conquista das Américas, realizada pelos europeus a partir de 1492, inaugurou uma nova era: a Modernidade/Colonialidade. Sua característica central foi estabelecer o racismo como novo modo civilizacional e organizador da economia política mundial. Um tipo de racismo próprio e singular caracterizado pela discriminação em função da cor da pele e sobre a dúvida a respeito da humanidade das outras etnias. Esse episódico histórico abriu caminho para a criação da ideia de raças e o seu consequente preconceito: o racismo.

O colonialismo destruiu culturas, subordinou, explorou, massacrou e assassinou fisicamente e/ou psicologicamente povos inteiros, fundando a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005; GROSFOGUEL, 2018; MALDONADO-TORRES, 2018). Esse conceito busca se diferenciar daquele, justamente para marcar a persistência dos princípios organizadores de relações sociais pautadas pelo racismo, ainda nos dias atuais, mesmo depois das supostas independências dos novos Estados nas Américas e na África, que marcaram o fim formal do colonialismo.

Com o avanço dos estudos sobre o sistema-mundo nas Américas, percebeu-se que essa colonialidade do poder vinha acompanhada de outras formas como colonialidade do saber, do ser e da natureza (GROSFOGUEL, 2012). A luta contra essas colonialidades chama-se decolonial. Enquanto Grosfoguel (2018, p. 114) chamou de giro decolonial, Dussel (2018) denominou por transmodernidade. Fato é que ambos, por diferentes palavras, quiseram marcar o processo de busca pela emancipação dos primados eurocêntricos justificadores da Modernidade/Colonialidade. Esse giro decolonial significa desintoxicar-se dos princípios ocidentais, racistas, patriarcais, heteronormativos, capitalistas, impostos pelos governantes europeus aos outros povos.

Com histórico diferente, do ponto de vista da sua práxis, não é possível determinar as raízes da filosofia política anarquista, isto é, suas raízes são indeterminadas e pode ser encontrada em toda luta contra as opressões e autoridades e por liberdade e igualdade no mundo inteiro. Por outro lado, suas formulações teóricas, mais acabadas, foram desenvolvidas no seio da luta operária na Europa e disseminada pelo restante do planeta. Essas formulações, extremamente ácidas, apresentavam uma crítica contundente a toda forma de autoridade e opressão atacando peremptoriamente suas representações políticas e econômicas modernas: consubstanciadas pelo Estado e pelo capitalismo.

Como resultado de suas ações diretas, a filosofia e a práxis anarquistas foram fortemente atingidas por pilares racistas implementados pelas governanças institucionais europeias (nobres, reis, presidentes, deputados, juízes, igrejas, militares, capitalistas, grande mídia)[1]. Não se tratava de um racismo pela cor da pele, mas de um racismo de classe, de garantia da ordem e epistemológico, em uma expressão: racismo oficialista. Suas justificativas pautavam-se no fato de os anarquistas caracterizarem-se por negar e lutar contra todos os princípios do mundo moderno que se estabelecia pelas mãos dos diferentes governos.

Uma singular instituição tem garantido a imposição dos interesses de todos eles em seu conjunto, trata-se do Estado. Com efeito, uma característica indelével dos anarquistas é ser antiestatal, que significa, na prática, estar em contrário aos princípios autoritários, hierárquicos, discriminadores, disseminados pelos seus diferentes governantes e/ou garantidos por ele. Como seu grande mérito, a filosofia anarquista negou a ideia da razão eurocêntrica, supostamente superior, bem como as ideias dualistas, modernas, estando contra a ordem difundida pela modernidade/colonialidade capitalista e estatal. Ao mesmo tempo, é importante frisar, a filosofia e a práxis anarquistas foram ampliadas e realizadas em outros continentes: nas Américas, na África, na Ásia. Nesse sentido, ser anarquista na Europa, e em qualquer lugar, era sinônimo de insubmisso, subversivo, violento, baderneiro, perigoso, destruidor, outsider. Por isso, foram, perseguidos, torturados, presos, condenados à morte, assassinados. Seus jornais e militantes foram caçados, seus sindicatos, fechados. Em resumo, o projeto anarquista foi a verdadeira antítese do projeto moderno, colonialista, estatal, capitalista, igrejista, militarista e nacionalista que marcou a nova era iniciada em 1492 e sofreu de racismo oficialista.

Entendemos que as interpretações decoloniais e as anarquistas possuem muitas características em comum. Ademais, têm peculiaridades idiossincráticas que podem ser extremamente úteis uma a outra. O fundamental a entender é que ambas possuem como eixo central a oposição por completo aos princípios difundidos pela modernidade/colonialidade, pelo capitalismo, pelas desigualdades, pelas discriminações.

Simultaneamente, tanto as interpretações decoloniais, que colocam o racismo como eixo central da modernidade/colonialidade, quanto as anarquistas, que valorizam a ação direta dos governados em detrimento do reconhecimento do papel do Estado e do capitalismo como legítimos, são marginalizadas pela colonialidade do saber inclusas nos saberes sujeitados (FOUCAULT, 2002) ou sofrem perfeitamente do epistemicídio acadêmico (SANTOS, 2011) ou racismo epistemológico (GROSFOGUEL, 2013).

HISTORICÍDIO

Também entendemos que existe um fenômeno que ataca o saber popular negro, indígena e anarquista que deve ser entendido para além da recusa das epistêmes decoloniais e anarquistas nas universidades ocidentalizadas e nas escolas. Trata-se do historicídio. Essa categoria busca apontar que as histórias revolucionárias, insubmissas, insurgentes de negros, indígenas e anarquistas são apagadas, negligenciadas, invisibilizadas da História. As constantes lutas por independência, liberdade e igualdade não são tratadas pela historiografia oficial. É por isso que não se estuda nos currículos acadêmicos a História das mais de mil sociedade indígenas que habitavam a região que se convencionou chamar de Brasil antes da chegada dos portugueses. A História brasileira absurdamente começa em 1500. A História das Américas começa em 1492. A História das resistências indígenas e negras ao colonialismo não faz parte dos currículos escolares. Não estudamos as histórias dos quilombos, mucambos e resistências indígenas e anarquistas. Simultaneamente, sabemos cada detalhe da História europeia. Mas não sabemos nada das Histórias dos outros continentes, inclusive do americano. Não sabemos nada da História da África. Igualmente, não sabemos nada das histórias de lutas dos anarquistas por liberdade e contra as diferentes formas de autoridade. Faz parte do estudo obrigatório escolar as revoluções inglesa, francesa, russa, industrial, mas não estudamos as revoluções do Haiti no século XIX, a mexicana e a da Manchúria no século XX. Assim, se inviabiliza o papel histórico revolucionário dos povos negros, indígenas e asiáticos. No seio da própria Europa, não estudamos a revolução espanhola, tampouco a revolução na Ucrânia no contexto da revolução russa de 1917, ambas com papel central de anarquistas.  Com efeito, vigora a composição de um triplo epistemicídio/historicídio reforçando um racismo epistêmico/oficialista que ataca fundamentalmente a cultura, o saber e a práxis negras, indígenas e anarquistas. Assim, vigora um terreno fértil para a desqualificação de tudo que vem desses povos e de seus revolucionários, reforçando a colonialidade do saber e o seu consequente ocidentalismo.

Com vistas a superar essa discriminação teórico-metodológica-histórica e preencher essa lacuna acadêmica, atentando contra a colonialidade do saber, desenvolvemos a pesquisa que segue.

O objetivo desse artigo é apresentar alguns conceitos que colaborem para as lutas antirracistas, a partir de uma simbiose entre a filosofia anarquista e a perspectiva decolonial, que podem ser úteis para descolonizar o poder, o saber, o ser e a natureza. De tal modo, confiamos na possibilidade de apontar alguns subsídios para os propósitos de libertação popular, que se constitui como objetivo central de ambas as filosofias.

         Essa pesquisa está organizada da seguinte forma. Desde a simbiose entre filosofia política anarquista e a perspectiva decolonial, jogamos luz para o pressuposto segundo o qual a sociedade ocidental está permeada por opressões sociais. Identificamos que essas opressões são organizadas a partir da ideia de raça e o seu consequente racismo pela cor da pele, peculiar dos tempos modernos. Assim, criamos alguns conceitos e ressignificamos outros como forma de aprimorar a identificação das opressões. Por consequência, dessa simbiose pudemos identificar: dez tipos puros de governanças sociais opressivas.[2] Não obstante, utilizando os princípios da teoria decolonial, percebemos que é imprescindível entender que a opressão racial é a organizadora e perpassa por todas as outras opressões. Daí criamos o termo de Necrofilia Colonialista Outrocida (NCO) para marcar diferentes formas de discriminações sociais existentes na atualidade e difundidas pela colonialidade. Elas atuam em conjunto e simultaneamente tendo o racismo pela cor da pele como seu núcleo irradiador, atentando incisivamente com mais ênfase contra negros e indígenas. As NCOs são as seguintes: patriarcal (misógina, sexual, cisnormativa), capitalista, religiosa, acadêmica-científica, da estética produtiva, oficialista e racista (xenofóbica, nacionalista, ufanista). Mostraremos, ainda, que essa última perpassa por todas as outras, pois funda a colonialidade/modernidade a partir daquilo que Grosfoguel (2013: p.52), baseado em Fanon, chamou de zona do ser e do não ser. Os brancos são considerados humanos e por isso possuem diversos direitos, enquanto negros e indígenas são considerados por quase humanos ou não-humanos, carentes de direitos e fruto de discriminações diversas, a começar pela racial.

         Avancemos.

2. DAS NECROFILIAS COLONIALISTAS OUTROCIDAS

Com base nas epistemologias anarquista e decolonial, e como forma de retroalimentá-las, propomos a utilização de dez conceitos de Necrofilias Colonialistas Outrocidas (NCOs) ou governanças sociais, nas quais todas são atravessadas pelo racismo. Simultaneamente, utilizamos o conceito de interseccionalidade criado pelas feministas negras para pautar a interseção entre raça, classe e gênero (Davis, 2016) ou raça, classe, gênero e sexualidade (Lugones, 2008).

As origens do conceito de Necrofilia Colonialista Outrocida estão em outro trabalho (DE MORAES, 2020). Todavia, resgatamos aqui seu resumo e suas justificativas.

O significado de Necrofilia emerge de um diálogo com os conceitos de “necropolítica” (MBEMBE, 2018), de “poder de soberania” e “biopolítica” (FOUCAULT, 2002) e de outremização (MORRISON, 2019). É importante situar que a categoria necrofilia surge no interior de um determinado contexto histórico e busca representar a atual conjuntura brasileira. Não há aqui qualquer pretensão universal.

Nesse sentido, no Brasil atual, entendemos que não se trata apenas de uma deliberação do soberano de fazer morrer e deixar viver (poder do soberano ou necropolítica), mas de uma política deliberada pela morte, uma simpatia, um amor quase hedonista pelo extermínio do “pária” da sociedade, do opositor, do outro. Um desejo racista. Não se trata apenas de um oposto à biopolítica, no campo de se regular a vida. A necrofilia não é apenas uma regulamentação da morte (necropolítica), mas busca representar um desejo pela morte.

Todavia, não é a morte de qualquer um. Por isso, ela deve estar casada com o conceito de colonialidade do poder, do ser, do saber e da natureza. É, afinal, uma necrofilia colonialista, pois sente prazer na morte do africano, do indígena e de todos os seus descendentes que não estão prontos apenas para servir e têm dificuldades em aceitar o lugar destinado pela supremacia branca. É, nestes termos, uma necrofilia colonialista, que busca expressar o racismo na sua forma mais pura. Assim, o termo colonialista aspira marcar que seus principais alvos são povos não europeus.

Não obstante, a necrofilia colonialista não atenta apenas contra povos não europeus. Tendo o conceito de outremização (MORRISON, 2019) como inspiração, sentimos a necessidade de utilizar e ressignificar a categoria outrocídio com vistas a explicar porque outras “minorias”, para além dos alvos do racismo, sofrem diante do conservadorismo reinante. Desta maneira, o conceito de outrocídio busca marcar a discriminação, a perseguição e o amor pela morte (simbólica, psicológica e/ou física) do pobre, do idoso improdutivo, da comunidade LGBTQIA+, da mulher independente, do anarquista, do comunista, do ambientalista, do adepto das religiões de matriz não judaico-cristã, do analfabeto, do deficiente físico, daquele que atenta contra a propriedade do rico. Seu primado é o narcisismo racista que não reconhece o outro como digno de respeito, nem como igual. Esse conceito representa a negação total e completa da alteridade, destinando ao diferente o ódio, a intolerância, a perseguição, a prisão, o assassinato. Em última instância, não concebe apenas o desrespeito pelo outro, mas um desejo por sua humilhação, que envolve seu aniquilamento psíquicoe/ou físico, sua morte no contexto de guerra permanente contra o outro. Utilizo aqui o conceito de guerra permanente no sentido de resumir uma política definida pelo ataque, pelo confronto, por entender o outro como inimigo, só porque não se coaduna, comunga, a mesma cultura, a mesma religião, os mesmos valores e não pertence a mesma etnia. É, ao fim e ao cabo, uma guerra iminentemente racista. Um aprofundamento e uma reação ao avanço de valores que negam o eurocentrismo, capitalista, judaico-cristão, heterossexual, patriarcal, racista.

Para abreviar, o conceito de NCO tem por objetivo representar, no agregado, as várias formas de assassinar literalmente e/ou psicologicamente, através da guerra permanente, diversos segmentos sociais de governados da sociedade, sistemas ambientais, epistemológicos, religiosos e animais do planeta, atentando assim contra negros, indígenas, pobres, mulheres, epistemologias revolucionárias, florestas e suas ecologias e animais. A NCO é aplicada em seu conjunto pelas seguintes concepções: o militarismo, o igrejismo, o nacionalismo, o capitalismo, o liberalismo econômico e o necro-Estado – instituições que prezam pela prática do conceito, pautadas na negação da alteridade e no narcisismo ufanista xenofóbico racista.

Cabe ressalvar apenas mais uma questão. Para facilitar o nosso entendimento, apresentamos a Necrofilia Colonialista Outrocida como um conjunto de opressões particulares. Estas opressões chamamos por NCOs ou por governanças sociais. O conceito de governança é emprestado da literatura anarquista com vistas a marcar a ideia negativa de que somos governados o tempo inteiro e por diferentes meios. Todo governo pressupõe a existência de uma dicotomia: governantes – governados, na qual aqueles mandam e estes obedecem. Governar, portanto, significa guiar, controlar, punir, ditar rumos… para os governados. Ao substantivar o ato de governar, o chamamos por governança, que no nosso entendimento não é positivo, pois, desde a filosofia anarquista, ser governado é o pior dos anátemas. Portanto, representaremos as diferentes opressões sociais pelo conceito de governanças sociais ou simplesmente NCOs específicas, como patriarcal, racista etc. Chamaremos por governados a soma de todos os grupos oprimidos pelas NCOs. Essas governanças sociais são alimentadas no interior do Leviatã, que busca subjugar a todos em seu conjunto, tratando-os como governados, consubstanciando-se no racismo estrutural e institucional. Apresentemos nossos conceitos.

3. DAS DEZ GOVERNANÇAS SOCIAIS OU NCOs

Ao tratarmos as múltiplas formas de NCOs, o mais importante a se dizer é que não fomos nós que as assinalamos. Elas já são abordadas/discutidas há muito tempo por diversos teóricos e coletivos políticos, e sentidas por um sem número de pessoas que as sofrem cotidianamente. Ninguém precisa explicar para uma mulher o que é o patriarcalismo; para um negro ou um indígena, o que é o racismo; para um LGBTQIA+, o que é lgbtqiafobia; para um praticante da umbanda ou candomblé, o que é implicância religiosa; para um trabalhador pobre, o que é a exploração/discriminação capitalista e o poder que um patrão exerce sobre sua vida; para um rebelde, contestador da ordem, que pratica a desobediência civil ou que simplesmente deve impostos, o que é a perseguição oficialista; para uma pessoa obesa ou com deficiência física, o que é rejeição da estética produtiva, o que é rejeição da estética produtiva; para um analfabeto, o que é o preconceito acadêmico-científico; e para um imigrante refugiado, o que é hostilidade nacionalista, xenofóbica, ufanista. Portanto, o que buscamos apresentar aqui não se encerra como nenhuma novidade, mas tem por objetivo reforçar a denúncia da existência dessas opressões para melhor superá-las. Em contrapartida, como parte da influência mútua das lentes anarquista e decolonial, portanto, por uma mirada decolonial libertária, a novidade que procuramos proporcionar é entender essas opressões como NCOs ou governanças sociais, impulsionadas pelo racismo, que devem ser destruídas em seu conjunto. Nestes termos, a grande solução é o autogoverno em todos os sentidos da vida que só pode se concretizar efetivamente com liberdade, igualdade e propriedade comum das terras e todos os meios de produção, autogerida socialmente.

Todas as NCOs buscam representar que o racismo não só se constitui como um princípio organizador da modernidade/colonialidade como faz parte de um projeto de civilização que incidi sobre todas as opressões.

Feita essa advertência, passemos as descrições da síntese das NCOs, e depois analisá-las-emos.

         3.1 GOVERNANÇA RACISTA

            A governança racista valoriza e estabelece como referência ideal a etnia branca, europeus e seus descendentes, idolatrando suas culturas, oprimindo e/ou desvalorizando a priori, negros, indígenas, amarelos e mestiços. Desta forma, o papel destinado a estes na sociedade consubstancia a banalização da sua subalternização, exploração, subjugação, prisão, humilhação, assassinato e genocídio. Como dizia Fanon (1968), sua cultura não é apenas vista como inferior, mas tratada como a quintessência do mal.

            A colonialidade do poder deseja que negros, indígenas, amarelos e mestiços achem triviais suas condições e vivam sem admoestar o Estado, suas leis e os donos do capital. Caso não se enquadrem nessa ordem, estarão fortemente ameaçados a virar residentes permanentes de um cárcere ou de um cemitério.

            Esta é a principal opressão social e todas as outras serão atravessadas por ela. Desde a conquista das Américas pelos europeus, iniciada em 1492, a criação da ideia de raça e o subsequente racismo permeia todas as relações sociais. Esse é o seu princípio organizador. Trata-se de um projeto de civilização, que é inerentemente racista.

            A herança e permanência do regime escravista, colonialista, é tão grande que negros, indígenas e mestiços são alvos principais da opressão capitalista, pois os piores empregos, as piores moradias, as piores escolas lhes são destinados. O subemprego, o desemprego e a miséria são suas fiéis degradantes companhias. As prisões, os cemitérios, as favelas e as periferias constituem-se como suas habitações persistentes.               É de sua importância reter aqui uma característica central: todo tipo de racismo é sempre institucional. Isto é, não há racismo sem estruturas sociais e instituições exercendo-o sobre populações, traduzindo-se em discriminações no mercado de trabalho, no acesso à universidade, a determinados territórios (com a sua segregação em espaços urbanos). Para que haja racismo é necessário que ocorra algo concreto e um efeito social.

            A essência da opressão racista traduz-se no estabelecimento da governança branca sobre as demais etnias. Essa opressão perpassa por todas as outras, atravessando-as e agudizando-as, formando a colonialidade do poder.

3.2 GOVERNANÇA CAPITALISTA (DE CLASSE)

            A governança capitalista, ou de classe, valoriza e estabelece como referência ideal o rico, proprietário, possuidor de capital, de dinheiro, o chefe, o patrão; e oprime, desvalorizando, a priori, os trabalhadores, pobres e miseráveis. Sob essa perspectiva, aqueles são os vencedores e os últimos os perdedores. Essa governança se expressa de várias maneiras, mas ela é por excelência do dinheiro, da propriedade privada dos meios de produção e subsistência, consubstanciando-se na divisão entre donos de capital e os proprietários, de um lado, e dos despossuídos desses meios, por outro. Assim, na sociedade consumista e com ausência de terras livres, na qual vivemos, estes são coagidos a vender sua força de trabalho para aqueles e ainda são vistos como inferiores por não possuírem bens de consumo, como roupas, carros, casas e até comida. A exploração, alienação, extração de mais-valor, subalternização dos não proprietários é o combustível dessa opressão que é usurpada pelo racismo.

            A priori, no projeto de civilização moderno/colonialista/capitalista os corpos brancos têm mais chances de ocupar os cargos mais privilegiados da sociedade, enquanto aos negros, indígenas e seus descendentes são destinados os piores empregos, quando não são totalmente descartáveis e vão para as prisões, cemitérios, valas comuns, subemprego.

Podemos elencar o aspecto da própria opressão habitacional como seu cerne. Nesse caso, os oprimidos são os sem-terra, sem-teto, escravos do aluguel e moradores das favelas e periferias. Se a pessoa mora em uma favela e/ou em lugar com grande concentração de pobres e miseráveis, com características de não respeitar a propriedade privada alheia, apriori, será considerada perigosa, sendo malvista e terá dificuldade para conseguir empregos e até amizades para além do seu meio.

Existem, ainda, os indivíduos que não têm um teto para abrigar-se do sol, da chuva e do frio. Suas companhias são a lua e os ratos, que os impedem de guardar uma comida para o dia seguinte. Sem dinheiro, a pessoa também não tem acesso a outros direitos básicos, como saúde e educação de qualidade. Sofrem dessa opressão, os pobres, miseráveis, mendigos, desempregados e os milhões de trabalhadores precarizados, terceirizados, com baixíssimos salários, que mal conseguem pagar uma refeição, um aluguel, enfim, questões básicas para uma vida digna.

A ditadura do capital é tão profunda que com a posse do vil metal se tem acesso a tudo, sem ele, a nada. Nesse caso, a pessoa é vista como pária na sociedade. Sua essência reside no estabelecimento da supremacia do capital, do dinheiro, da plutocracia.

A princípio, essa ditadura não dependeria da cor da pele, pois nas Américas existem corpos brancos que não usufruem diretamente do privilégio da etnia, portanto, ela não é absoluta. Todavia, é um grande equívoco não reconhecer que a ampla maioria dos oprimidos pela governança capitalista são negros, indígenas e seus descendentes. De modo que ao avistar um corpo negro quase se tem certeza de que ele é pobre. Enquanto que, com um branco, acontece o contrário.

Em resumo, é fundamental reconhecer a opressão capitalista que divide a sociedade em quem tem dinheiro e quem não tem, mas também é premente reconhecer que está amplamente cortada pelo racismo.

3.3 GOVERNANÇAS PATRIARCAIS: MISÓGINA, SEXUAL E CISNORMATIVA[3]

O patriarcado é uma estrutura de poder que engloba diferentes discriminações no seu interior e que entende um único mundo binário: masculino x feminino, sendo aquele superior. Trata-se de uma construção de visão de mundo baseada principalmente em valores igrejistas e militaristas, que se colocam como guardiões dos valores conservadores e persecutórios eurocêntricos. Nestes termos a comunidade LGBTQIA+ é tida como doente ou como desviante do padrão “correto” designado por Deus.

Para lutar contra o patriarcado, muitas corajosas, mulheres brancas, criaram movimentos feministas que almejavam paridade com os homens brancos no meio público, isto é, buscavam participar de vida para além da sua própria casa, o que lhes era totalmente vedado. Essas mulheres eram consideradas como naturalmente inferiores pelos homens brancos. O papel que o patriarcado destinou à mulher branca era de cuidar das crianças, da casa e de servir como objeto de desejos sexuais para os tidos como os chefes de família, seus verdadeiros governantes. Assim, do ponto de vista histórico, essas mulheres não eram tidas como portadoras de direitos, as participações tanto na vida pública quanto nos negócios lhes eram negadas. Na Europa, durante o século XVI/XVII, milhares delas foram queimadas vivas sob acusação de bruxaria. Em síntese, a construção do mundo patriarcal previa uma completa submissão da mulher ao homem. O Estado, as igrejas e o militarismo exerceram o papel de controle sobre todas aquelas que não aceitaram o papel que lhes era destinado pelo patriarcado.

Não obstante a subalternização da mulher branca diante do homem branco, é importante marcar que o patriarcado, atravessado pelo racismo, coloca as mulheres negras e indígenas em situação absolutamente pior do que as oriundas do continente europeu, pois estas sofrem pela dupla subalternização: racista e machista. Fato que divide as percepções das opressões entre mulheres brancas, de um lado, e negras e indígenas, por outro. As últimas, como alvo principal do racismo, possuem interesses na maior parte das vezes distintos dos das mulheres brancas. Em outras palavras, estas são reconhecidas como parte da mesma raça pelo homem branco dominador, portanto, possuem sua humanidade respeitada, tendo acesso a direitos dos mais diversos que mulheres negras e indígenas não possuem (Fanon, 2008; Grosfoguel, 2012).

Segundo Fanon (2008) e Grosfoguel (2012), as mulheres negras e indígenas, tal como os homens de suas etnias, estão na zona do não-ser, isto é, não possuem o mesmo status de humano, são tratados como sub-humanos ou não-humanos, assim não possuem o mesmo reconhecimento de direitos que os brancos desfrutam. Este é o primado da sociedade racista, moderna, capitalista. Nestes termos, por exemplo, o movimento feminista branco pode fazer protestos contra o poder masculino branco nas ruas e bairros onde moram e sua vida não correrá risco. As instituições estatais, em regra, não lhes tratarão com extrema violência, com exceção em momentos revolucionários. Todavia, se as mulheres negras fizerem protestos nas favelas e periferias, sua vida, de seus filhos e familiares corre sério risco, pois elas não possuem o mesmo status que as brancas. Normalmente, as mulheres negras são tratadas pelo Estado com extrema violência, enquanto as brancas têm sua humanidade respeitada.

Por outro lado, os movimentos feministas brancos lutaram e almejaram, por exemplo, pelo fim da violência doméstica, pelo direito ao voto, por acesso ao estudo e ao trabalho fora de casa, e, depois, por salários iguais. Aliás, é importante frisar que essas lutas continuam até hoje, embora algumas conquistas importantes tenham sido realizadas. Dessas lutas das mulheres brancas algumas coisas sobram para as mulheres negras e indígenas. Todavia, a grande maioria destas continua sendo vista como ideias para trabalhar com limpeza e cozinhando nas casas das senhoras brancas e nos shopping centers, onde os europeus e seus descendentes consomem. Em resumo, o patriarcado não é igual para mulheres negras e brancas.

            A essência da opressão patriarcal constitui-se no estabelecimento da governança masculina cisgênera branca, que não podemos deixar de entender como atravessada igualmente pelo racismo. Em outras palavras, é notório que, de um modo geral, uma mulher branca, por exemplo, tenha status superior a um homem negro, ocupando melhores empregos, tendo mais educação, visibilidade e respeito na sociedade fundada pelo racismo. É a prática do racismo estrutural. Nos regimes coloniais, as mulheres brancas podiam mandar açoitar um homem negro em qualquer lugar e a qualquer hora. Essa era uma marca da primazia do racismo diante do patriarcalismo. Não obstante, a mulher branca estava absolutamente submissa ao homem branco. Essas características coloniais marcaram profundamente nossa cultura e permanecem nos dias atuais.

3.3.1 GOVERNANÇAS MISÓGINAS

No interior da NCO patriarcal, existe a opressão de gênero com a marcação masculino – feminino. Corpos considerados masculinos dominam e inferiorizam corpos considerados femininos, frágeis, secundários. Essa NCO valoriza e estabelece como referência ideal o poder ‘ordinário’ masculino (que no mundo racista em que vivemos significa homens cisgêneros (cis)[4] brancos), oprimindo e/ou desvalorizando a priori, as representações femininas. Trata-se da aplicação da lógica dualista europeia que fundou a colonialidade (Grosfoguel, 2012).

Sob esse nexo, é possível perceber a vigência do patriarcado ainda antes da concepção atual de sexo, ou seja, do modelo de dois sexos, que preconiza o dispositivo binário de gênero (Lanz, 2014) por meio de termos específicos para corpos ‘femininos’ e ‘masculinos’. A governança misógina, portanto, pode ser definida como uma normatização constante de corpos lidos como femininos ou masculinos, de forma a manter a superioridade masculina sobre o feminino. Desta NCO, emergem tipos de violência específicas, que se baseiam na repulsa ao feminino, na repressão da sexualidade feminina e na invasão desse corpo.

3.3.2 GOVERNANÇA SEXUAL[5]

Essa NCO valoriza e estabelece como referência ideal os heterossexuais, oprimindo e/ou desvalorizando a priori, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queers, intersexuais e assexuais (LGBTQIA+). Em outras palavras, a governança sexual diz respeito a qualquer violência infligida a pessoas não-heterossexuais, ou cuja orientação sexual rompa com a heteronormatividade. De forma geral, a governança sexual pode ser entendida como a subalternização – e consequente violência – de tudo que escapa da heteronormatividade/heterossexualidade compulsória. Para que o patriarcado se sustente, é preciso manter um modelo de sexualidade que contenha símbolos de masculinidade acima de um modelo de sexualidade frágil/feminino. É importante ressaltar, também, que, dentro desse leque de orientações não-heterossexuais, encontramos a homossexualidade masculina e feminina, a bissexualidade, a assexualidade, entre outras. Para cada sexualidade, há diferentes tipos de opressões. Por exemplo, não podemos equiparar a homofobia contra homens cisgêneros gays à homofobia contra mulheres cisgêneras lésbicas, uma vez que estas sofrem homofobia e misoginia: a manifestação da homofobia contra mulheres cis se distingue da homofobia contra homens cis. Há uma infantilização da lesbianidade, uma invisibilização da bissexualidade e um aniquilamento sistemático da homossexualidade relativa a homens cis gays. Assim, heterocentrismo significa toda forma de perceber e categorizar o universo das orientações sexuais a partir de uma ótica centrada em uma heterossexualidade estereotipada considerada dominante e normal no sentido moralizante (JESUS, 2013, p. 366).

            Orientações sexuais e identidades de gênero que não reflitam a primazia da heterossexualidade compulsória estão sujeitas a diversas formas de opressão. Do heterocentrismo, deriva o heterossexismo, isto é, a invisibilização de pessoas que, ao se tornarem visíveis, passam a sofrer violências. Em suma, indivíduos que não obedecem à norma heterossexual denunciam a fragilidade do patriarcado e devem ser aniquiladas. Os tipos de violência que afligem mulheres – demonstrados por feminicídio – e que afligem pessoas não-heterossexuais – demonstrados em assassinatos por LGBTfobia – podem partir do mesmo princípio, mas ocorrem de maneiras diferentes; são violências que se expressam em circunstâncias distintas. Até o fim do século XX, no campo da psiquiatria e da psicologia, por exemplo, se defendia que “era necessário estabelecer e manter um comportamento heterossexual em um paciente homossexual” (JESUS, 2013), de modo que “certos autores adotavam o uso de eletrochoque ou de hormônios masculinos a fim de curar gays e hormônios femininos para lésbicas” (JESUS, 2013, p. 364).

Do ponto de vista histórico, essas opressões foram difundidas, aplicadas, legitimadas diretamente por igrejas ou apoiadas ou negligenciadas por elas. Como desde pelo menos o início da Era Moderna, as igrejas possuem grande influência nos Estados, quando não os controlam diretamente, o tipo de racismo patriarcal, heterossexual e cisgênero se tornou estrutural. Assim, a perspectiva autoritária, do domínio do corpo, do estabelecimento apenas de duas orientações, nos moldes binários eurocentrados, foi a tônica que oprimiu diferentes formas de expressão sexual e suas peculiaridades.

Com reação a essa opressão, as lutas dessas comunidades foram fundamentais para conquista de direitos civis e sociais, inclusive, em alguns países, com o reconhecimento da união estável ou casamento entre pessoas do mesmo sexo, possibilidade de alteração do nome civil, adoção de crianças independente da orientação sexual do responsável, ou programas de saúde pública destinados a grupos específicos. Todavia, a discriminação social sobre esse grupo continua a passos largos. As igrejas e o militarismo, de um modo geral, são as instituições que mais estimulam essa opressão.

            A essência da governança sexual reside no estabelecimento de um tipo específico de preconceito, que atravessado pelas governanças racista e capitalista, agridem em maior grau negros, indígenas e pobres.

3.3.3 GOVERNANÇA CISNORMATIVA

            Enquanto a governança patriarcal se remete à misoginia e a governança sexual ao aniquilamento de sexualidades não-heterossexuais, a governança cisnormativa aflige corpos não-cisgêneros. Jaqueline Gomes de Jesus (2013) faz uma diferenciação entre sexocentrismo e sexismo. O primeiro se refere ao “fenômeno universal e milenar da diferenciação ligada ao conceito de sexo biológico”. Ao determinarmos identidades de gênero pelo sexo biológico, deslegitimamos a transgeneridade e violentamos corpos trans. A transfobia tem sua fundamentação no sexocentrismo.

A NCO cisnormativa representa a imposição de um padrão de corpo/comportamento ligado à cisgeneridade e à operacionalização institucional de sua normatização. Nesse caso, suas principais vítimas são os corpos trans – corpos não-normativos. Assim, a cisnormatividade se sustenta em práticas de opressão e violência.

O Brasil é o país que em números absolutos possui o maior número de assassinatos de transexuais do mundo.[6]Como as outras, essa opressão é exacerbada pelo racismo.

Em compêndio, o sexismo está no campo da governança da misoginia, o heterocentrismo e o heterossexismo estão no campo da governança sexual e o sexocentrismo está no campo da governança cisnormativa. Todas elas compõem a NCO patriarcal.

De tal modo, um homem cis homossexual sofre homofobia; um homem trans homossexual sofre transfobia e homofobia; uma mulher trans lésbica sofre transfobia, homofobia e misoginia, ao passo que uma mulher cis lésbica sofre homofobia e misoginia. Uma mulher trans heterossexual sofre misoginia e transfobia – cuja violência pode repercutir como transfeminicídio –, e não homofobia. Um homem trans heterossexual sofre transfobia, e não homofobia. Essas opressões se entrecruzam e se somam, mas são distintas. Embora as três governanças – patriarcal, sexual e cisnormativa – se sustentem na determinação biológica dos sexos, na repressão de sexualidades não-heterossexuais e na repulsa ao feminino, elas se manifestam de maneiras distintas e demandam diferentes medidas para serem liquidadas.

            Por fim, a luta pela libertação de todas as opressões patriarcais – desde que reconhecido o atravessamento racista colonialista que agrava a situação para corpos negros, indígenas e seus descendentes, – é fundamental para o estabelecimento de uma sociedade verdadeiramente livre, igualitária, em duas palavras, anarquista e decolonial.

3.4 GOVERNANÇA ACADÊMICA-CIENTÍFICA

            A NCO Acadêmica-científica (epistemológica ou do saber) atua por dois caminhos:

1) No plano social, essa governança valoriza e estabelece como referência ideal as pessoas com formação universitária, oprimindo e/ou desvalorizando a priori analfabetos e pessoas com pouco estudo, apresentando-as como incapazes. São tratadas como incompetentes e como se fossem naturalmente “ignorantes”. Como o racismo, o patriarcalismo e o capitalismo atravessam todas as opressões, negros, indígenas, mulheres e pobres são menosprezados por ela, tratados como inferiores intelectualmente.

2) No plano da produção de conhecimento, o âmago dessa opressão fundamenta-se no estabelecimento da governança do saber acadêmico, científico, técnico, erudito, em detrimento do saber popular, daquilo que Foucault (2005) chamou de saber das pessoas, que eram transformados em saberes sujeitados ou sepultados. Essa tirania que valoriza apenas o saber produzido na Universidade foi denominada por Boaventura de Souza Santos (2011) por epistemicídio. Grosfoguel (2013) cunhou esse processo por racismo epistemológico.

            Essa é a NCO por excelência do ‘saber científico’, produzido nas universidades, e na maioria das vezes completamente descolado da realidade popular. Trata-se da opressão que assevera que os únicos que podem produzir saber são os homens brancos, ‘doutos’, especialistas em defender a ordem. Uma pessoa que não teve oportunidade de estudar, porque tinha que trabalhar desde criança para garantir a sobrevivência sua e da família, é oprimida por outros que nunca labutaram durante a infância, a adolescência e, às vezes, até durante a idade adulta.

            Só no Brasil, de acordo com pesquisa do IBGE, em 2016, existiam 11,8 milhões de adultos analfabetos e 51% da população tinha apenas o ensino fundamental. Todos esses são alvos constantes dessa opressão. As NCOs racista e de classe incidem na governança acadêmico-científica na medida em que negros, indígenas e pobres possuem grandes dificuldades para ter acesso a estudo de qualidade que requer tempo disponível e dinheiro para investimento educacional. Ademais, seus amplos saberes produzidos na contramão do eurocentrismo são sujeitados, discriminados e invisibilizados.

3.5 GOVERNANÇA RELIGIOSA

            A governança religiosa valoriza e estabelece como referência ideal, as religiões judaico-cristãs, oprimindo e/ou desvalorizando, a priori, os ateus e adeptos de outras religiões/crenças/seitas. Essa NCO é bastante antiga, pois, desde a Idade Média, por exemplo, na Europa, os inquisidores da Igreja Católica perseguiram as ‘bruxas’, ‘feiticeiras’ e os hereges. Em algumas cidades europeias, milhares de mulheres foram queimadas vivas nas fogueiras; na Alemanha hitlerista, os ciganos e os judeus foram igualmente perseguidos pelos nazistas. No processo de colonização nas Américas e na África, as crenças indígenas foram rechaçadas pelos clérigos europeus. As religiões de matriz africana foram tidas como de culto ao demônio por muitos adeptos judaico-cristãos. Os árabes tiveram suas crenças oprimidas por muitos cristãos. Atualmente, no Brasil, várias perseguições e discriminações são realizadas com ataques a terreiros de umbamba e candomblé. No mundo, acontece a intolerância com relação aos islâmicos. Por fim, o cristianismo primitivo que nasceu revolucionário e anticapitalista também foi perseguido pelas autoridades da época.

            A essência dessa opressão constitui-se na persecução ao culto do diferente e está fortemente amparada no dogma religioso que se preza. Como todo dogma, ele se apresenta como portador da verdade absoluta, sendo geralmente intolerante com o outro. Pelo exposto, no mundo ocidental, atualmente, essa NCO busca o estabelecimento da governança das religiões judaico-cristãs. Obviamente, percebemos o racismo religioso aqui propalado pelos governantes brancos com base em Israel, nos EUA e na Europa. Suas proposições são intransigentes e não reconhecem outras formas e cosmogonias que interpretam o mundo de maneira própria.

            Aqui também percebemos a manutenção dos princípios colonialistas e racistas, onde as religiões não-brancas são as perseguidas. Cabe aqui uma última ressalva. Os judeus foram historicamente perseguidos pelas religiões de matriz europeia, mas depois da Segunda Guerra e do crescente poder político e econômico que conseguiram no mundo e, principalmente, nos EUA, passaram a exercer a hegemonia junto com os cristãos, sendo reconhecidos por estes, inclusive como eixo do mesmo fundamento religioso.

3.6 GOVERNANÇA OFICIALISTA

            A governança oficialista valoriza e estabelece como referência ideal o ‘cidadão’ que respeita a lógica de ordem estabelecida pelas instituições oficiais (estatais, capitalistas, religiosas, militarista), vota em pessoas para lhes governar sempre que é convocado, idolatra as forças de repressão e os governantes. Essa opressão atua contra e/ou desvaloriza, apriori, os rebeldes, revolucionários, contestadores do sistema, não seguidores das leis, insubordinados, e todos aqueles defensores de algum tipo de desobediência civil.

            Sua essência materializa-se no estabelecimento da supremacia da governança jurídica, das leis, da obediência, do Estado, do modelo padrão de cidadão cumpridor dos seus deveres e não contestador da ordem. Como nas demais governanças, o ideal que se requer dessa NCO é a valorização e naturalização do status quo, comandado por homens brancos através de instituições bem definidas que trabalham para lhes resguardar seu domínio. Todos os governados devem obedecer.

            Simultaneamente, essa NCO possui um plano de voo de cunho racista para negros, indígenas e seus descendentes sempre pautados no dever de obediência e de idolatria: das leis, das instituições modernas, capitalistas, colonialistas, igrejistas e militaristas e da cultura europeia. Os não-brancos e pobres devem saber “o seu lugar na sociedade”, tratados meramente como novos escravos, produtores de riquezas, prazer e bem-estar para os brancos ricos. Devem respeitar peremptoriamente a propriedade privada das terras, das fábricas, dos bancos e de qualquer posse, que normalmente pertence aos brancos. Agindo assim, não serão presos, nem assassinados pelo Estado.

            Por outro lado, todo governado pode contestar essa ordem oficialista. Brancos governados também violam e contestam o sistema, erigido para favorecer alguns proprietários descendentes de europeus. Não obstante, se esse contestador da ordem for negro/indígena, terá um tratamento absolutamente mais incisivo do que um branco, estando sua vida em maior risco, com mais facilidade.

3.7 GOVERNANÇA DA ESTÉTICA PRODUTIVA

            A NCO da estética produtiva apresenta dois padrões ideais: a) do trabalhador cumpridor de ordens e tarefas, pontualmente, e com ‘sorriso no rosto’, sempre pronto para fazer hora extra, sem se atrasar, nem faltar ao trabalho e, ainda, primar pela riqueza do chefe, produzindo o máximo possível no menor tempo e sem reclamar por aumento de salário; b) do corpo branco ‘perfeito’: homens musculosos e mulheres esbeltas, altas, com curvas (corpo “tipo violão”), sem estrias e celulites, cabelos lisos, com aparência juvenil. Estes são os modelos de propaganda das TVs. Trata-se do tipo ideal almejado pelos patrões para trabalhar no comércio, nos meios de comunicação, nas academias e em muitas outras atividades. Na realidade, a ideia que se quer passar é de uma pessoa produtiva, ‘bela’ e eficiente, que trabalha sem parar, sem limitações, sem deficiências físicas ou mentais. Aqui, portanto, entra a ideia do capacitismo.[7] Estas opressões atuam contra e/ou desvalorizam, a priori, os deficientes físicos, obesos, idosos, fracos, portadores de alguma doença ou vírus, negros ou aqueles que não se enquadram em moldes de beleza definidos pela indústria cultural. Todos que fujam dos padrões estabelecidos pela dita moda da estética produtiva são taxados e discriminados como inaptos e, por exemplo, dependendo da situação têm grandes dificuldades para conseguir um emprego. É uma situação absolutamente constrangedora e triste, quando alguém sabe que não conseguiu vender sua força de trabalho (que significa ser explorado), porque não pertencia aos padrões desejados de beleza estabelecidos por essa governança.

            Em suma, em uma sociedade voltada para o mercado e para obtenção de lucros acima da vida, as pessoas são vistas e avaliadas pela sua ‘embalagem’, pela máscara, pela imagem exterior. Isto posto, os oprimidos pela estética produtiva não têm espaço em muitos empregos. Não passam pela entrevista. Em grande medida, só conseguem ocupações para cargos de baixos salários e/ou de condições insalubres que não são procurados por aqueles que atendem aos padrões determinados.

            Por outro lado, estar enquadrado pelos arquétipos almejados por essa governança, pode ajudar na conquista do emprego, como galgar postos mais altos na carreira. A quantidade enorme de desempregados favorece a seleção com base na suposta “beleza” eurocentrada. Quando duas pessoas possuem o mesmo currículo, por exemplo, o primeiro definidor da NCO da estética produtiva é a cor da pele. Assim, negras e negros são, a priori, prontamente relegados com relação aos brancos. É o atravessamento racista.

            Não obstante, no mundo da linha do humano, isto é, entre os brancos também existe o atravessamento patriarcal que explicita a preferência para altos empregos para homens brancos em detrimento das mulheres brancas. Obviamente, homens negros e indígenas não são sequer considerados nessa competição, muito menos as mulheres das mesmas etnias. Uma última ressalva. A opressão da estética produtiva pode parecer inócua para alguns, mas ela causa sérios problemas psicológicos e de autoestima que podem levar à depressão e até à morte.

3.8. GOVERNANÇA DA NATUREZA

A NCO da Natureza está pautada na perspectiva histórica, segundo a qual a cultura dominante europeia tem tratado a natureza como um objeto para se atingir objetivos econômicos capitalistas. Ao pensar dessa maneira, a fauna e a flora são meios para se obter lucros. Nesse sentido, se destrói árvores, rios, praias, florestas inteiras, suas ecologias e animais, exercendo o ecocídio.

A perspectiva dominante eurocentrada, moderna, colonialista não quer perceber que sem natureza não tem vida na terra. Embora do ponto de vista da economia capitalista, e sua ânsia louca pelo lucro, seja racional utilizar, irresponsavelmente, a natureza como recurso; do ponto de vista do prolongamento da vida nesse planeta, trata-se de uma medida absolutamente irracional, uma política da morte, como alertam vários indígenas (Krenak, 2019; Kopenawa, 2019;Munduruku, 2009).

Existe um processo de matança generalizada de animais selvagens e também de criação de animas para consumo humano. Usaremos a denominação de animaticídio. “Estudo da WWF com mais de 3 mil espécies mostra que os humanos destruíram 50% da população de animais selvagens do mundo em apenas 40 anos”.[8]

Por outro lado, povos africanos e indígenas têm outras cosmogonias e não tratam o meio-ambiente como objetos, mas como sujeitos de direitos. Com efeito, são seus maiores defensores. A luta pela vida humana não pode estar descolada da luta pela preservação da natureza, da pachamama. Nesse sentido, uma perspectiva anarquista, libertária, tem muito o que aprender com os povos originários das Américas e da África.

4. AMPLIANDO OS HORIZONTES DA NCO RACISTA: NACIONALISMO, UFANISMO E XENOFOBIA

Descritas as diferentes formas de opressões sociais existentes no sistema-mundo e destacado como o racismo perpassa por todas elas, queremos retornar ao seu código propulsor e aprofundar um pouco a discussão. Defendemos que a NCO racista tem como sua parte constitutiva a xenofobia, o ufanismo e o nacionalismo. Nestes temos que essa opressão alicerça a base central de todas as outras, pois valoriza e estabelece como referência ideal os seus iguais que possuem os mesmos traços do corpo, a mesma cor da pele, a mesma cultura, a mesma língua, os mesmos costumes, o mesmo sotaque, a mesma religião, a mesma formação acadêmica, as mesmas orientações sexuais e discrimina os diferentes, oprimindo-os e/ou desvalorizando-os. Em termos concretos, a NCO racista, nacionalista, ufanista, xenofóbica está a serviço da supremacia branca.

Mas como que ela se sustenta? A pedra angular dessa NCO ampara-se no temor ou antipatia pelo que lhe é incomum, ou estranho, ‘feio’ e não pertence ao seu ambiente. Em resumo, a xenofobia racista só reconhece aquilo que lhe parece como seu semelhante. Assim, o fundamento do despotismo patriarcal está em uma certa ‘xenofobia racista’ ao feminino, ou misoginia; bem como, o sustentáculo da governança branca, encontra um certo ‘nacionalismo ufanista xenofóbico racista’ europeu. Podemos dizer o mesmo para as demais tiranias de fundamento sexual, acadêmica-científica, capitalista, cisgênera, religiosa, da estética produtiva e oficialista que, respectivamente, destinam tratamento xenofóbico racista ao homossexual, ao analfabeto, ao pobre, ao não adepto das religiões judaico-cristãs, ao deficiente, ao trans, ao idoso, ao ‘maltrapilho’ e ao rebelde.

A força dessas opressões está na comunidade imaginada de nação, no nacionalismo, no ufanismo, que são fundamentalmente modernos e colonialistas e estão essencialmente ligados à ideia eurocentrada de unidade e centralização. Essa perspectiva começou a ser arquitetada em fins do século XV com a formação dos Estados nacionais ibéricos com a respectiva centralização do poder e o estabelecimento, primeiramente, de um novo tipo de poder justificado pela seguinte imagem: cada Estado, uma identidade, uma nação, uma religião, uma cultura. Foi desta maneira que os estados europeus se estabeleceram e passaram a discriminar os diferentes “estrangeiros” que, sob essa lógica, deveriam se submeter à unidade estatal e religiosa imposta, ou deveriam ser expulsos das fronteiras da “nação”. Foi um passo absolutamente forte para toda forma de negação da diversidade, da pluralidade, da diferença. Essa nova formação europeia implementou num primeiro momento um racismo religioso, perseguiu mulçumanos e judeus no território de Al-Andalus e buscava se justificar por uma certa pureza de sangue, acontecendo exatamente antes da início da conquista das Américas (Grosfoguel, 2013).

Com efeito, a conquista das Américas ocorreu sob o espírito da conquista, da guerra, da unidade religiosa e o seu sectarismo correspondente. Esteve diretamente ligada à procura de mercadorias (capitalismo), de busca e apropriação de terras (propriedade privada) e amplamente fundamentada nas categorias: hierarquia, autoridade, centralização, identidade, religião e combate. Princípios característicos e amplamente difundidos pelas instituições que fundaram o Estado: o igrejismo e o militarismo. Assim, os termos nacionalismo, ufanismo, xenofobia e racismo, que nada mais são do que negação da alteridade, se constituem como fundamentos da modernidade/colonialidade racista, inaugurada com o extermínio de indígenas e negros no processo de apropriação de suas terras, para transformá-los em animais produtivos com vistas à produção de mercadorias para o conquistador. Tudo isso foi gerido pelo Estado sob NCO racista.

Nestes termos, a essência da governança nacionalista, xenofóbica, ufanista, racista consubstancia-se no ódio ao outro, na intolerância, na perseguição, na falta de alteridade, na ausência de respeito, na cegueira generalizada e na ‘esquizofrenia’ que em princípio desconfia dos diferentes. Enfim, sua essência é a guerra. Essa opressão historicamente caminhou com o referencial do orgulho e do ego exacerbado. Uma guerra que também é ao desconhecido e/ou ao dessemelhante. Guerras que não à toa foram realizadas por militares e tinham caráter religioso e/ou econômico.

O nacionalismo racista tem como sustentáculo a ideia da unidade entre alguns para combater, subalternizar, oprimir, outros. Esse é o fundamento da discriminação, da desconfiança, que gera medo, insegurança, e, por consequência, xenofobia ufanista.

A NCO xenofóbica racista, além de ser a raiz de todas as outras, atualmente, alicerça sua própria governança direta e sem intermediários, atentando contra os estrangeiros, principalmente, se vierem de países periféricos, se forem negros, indígenas, amarelos e mestiços, pobres ou miseráveis, cultuar religiões diferentes da do grupo predominante, tiverem costumes diversos etc. Enfim, todas as tiranias trabalham em conjunto para excluí-los, dada a ligação natural e intrínseca que possuem com o nacionalismo. Essa opressão também ocorre no interior de um mesmo país, quando, por exemplo, no Brasil, alguns grupos do sul/sudeste se sentem superiores e discriminam pessoas do norte/nordeste.

Com a crise migratória, vivenciamos a origem do crescimento de simpatizantes de partidos protofascistas, cuja sustentação principal está na negação do estrangeiro (branco, negro, mestiço ou indígena) e na extrema reivindicação do suposto nacionalismo, do militarismo e do igrejismo. Trata-se de uma opressão narcisista, que só admira a si mesmo e só aceita o outro se for um espelho seu, em todas as circunstâncias.

O RECONHECIMENTO E A LUTA INDEPENDENTE PELO FIM DE TODAS AS NCOs

            As dez NCOs, significam, na prática, a materialização da supremacia ‘nacionalista’, do homem branco, heterossexual, rico, com formação universitária, cisgênero, praticante de religião judaica ou cristã, belamente produtivo, idólatra do Estado e suas leis, e preconceituoso com relação aos estrangeiros pobres. No extremo oposto, estão negros, indígenas e seus descendentes em função de o racismo por cor da pele ser o princípio organizador civilizacional da modernidade capitalista estatal cristã militarista.

            Problematizemos um pouco mais.

Indubitavelmente, uma mulher branca, rica, heterossexual, letrada, belamente produtiva, adepta da religião judaico-cristã, nacionalista, cisgênera, respeitadora e idólatra das leis estatais pode ser oprimida pelo patriarcado branco, simplesmente por ser mulher. Todavia, uma mulher negra, pobre, transexual, praticante de qualquer outra religião que não as judaico-cristãs, ou mesmo ateia, analfabeta, deficiente ou idosa, defensora do fim do Estado e do capitalismo, portanto, revolucionária, e estrangeira, imigrante ilegal, está, infinitamente, sendo mais sujeita às múltiplas opressões. A mulher branca está inclusa na zona do ser. É tratada como humana. Possui diversos privilégios garantidos pela colonialidade. A mulher negra e, principalmente, nos termos apresentados, encontra-se como mais discriminada nessa civilização.

Assim, a supressão, apenas da opressão patriarcal, interessa, somente, a mulher branca do primeiro exemplo. Enquanto para a mulher negra, interessa a liquidação da opressão racista, patriarcal e de todas as demais NCOs em seu conjunto. Logo, é importante frisar que a luta antipatriarcal para libertação da mulher do segundo exemplo apresenta-se limitada, pois sua angústia é atravessada por outros despotismos.

Vejamos o caso da opressão racista a partir de um exemplo muitíssimo incomum: o caso de Barack Obama: um homem, negro, heterossexual, com formação universitária, cisgênero, seguidor das religiões judaico-cristãs, belamente produtivo, idólatra do Estado e de seus governantes, portanto, ‘bom cidadão’, nativo e nacionalista, rico (proprietário) ou milionário, como disse Kom’boa (2015), será oprimido pela supremacia branca.[9] Por outro lado, se retomarmos o mesmo exemplo da mulher negra utilizado para o patriarcado, percebemos que ela está infinitamente mais sujeita às NCOs.

Com efeito, como no espelho da governança patriarcal, a supressão da opressão racista interessa ao primeiro exemplo, enquanto não resolve, nem emancipa a mulher do segundo. Assim, é importante entender que existem diferenças entre as opressões sofridas pelos negros. Seria uma estupidez achar que mesmo hipoteticamente a supressão apenas da opressão racista resolveria, igualmente, os problemas dos dois exemplos. Dizemos hipoteticamente, pois a opressão racista faz parte do sistema capitalista desde o seu nascimento.

Kom’boa Ervin (2015), com vistas a ratificar que não basta a luta antirracista para acabar com as opressões sofridas pelos negros, cita os exemplos dos movimentos de descolonização na África, depois dos quais, ‘líderes’ nacionalistas, que governaram os países, foram os mais conservadores e perseguiram os lutadores revolucionários, instalando ditaduras sangrentas contra os negros pobres. Tudo isso em aliança com governantes e capitalistas europeus. Situação parecida aconteceu mesmo quando revolucionários aliados, das frentes de libertação, assumiram o Estado, tornando-se partidos comunistas de Estado e novos ditadores sobre os governados. Em resumo, em países africanos, com a mais ampla maioria dos empresários e dos governantes negros, a maior parte dos governados, pobres e miseráveis, sofre de diversas opressões, enquanto aqueles, vivem em condições bastante abastadas. Se concebermos que todo racismo é institucional, em países governados e geridos por negros, deveria extinguir a NCO racista. Todavia, negros continuam oprimidos por classe, por sexo etc. É necessário e, indubitavelmente, fundamental, o fim da opressão racista, pois é ela que funda a modernidade e estabelece as hierarquias sociais e suas discriminações, constituindo-se como a base das NCOs, mas somente isto não resolve o problema do negro governado em todos os sentidos da vida.

Ainda assim, é muito comum que os alvos das governanças sintam, com mais veemência, apenas a opressão que lhe diz respeito e tendam a valorizá-la mais do que as demais. Isso é absolutamente normal. Talvez, inconscientemente, todos vão trabalhar dessa maneira. A esfinge consiste quando determinadas pessoas minimizam os problemas que outros sofrem a partir do um olhar externo. Este sim, constitui-se como uma dificuldade séria que faz parte de um princípio individual, egoísta, típico do pensamento liberal, despreocupado com o bem-estar do outro, que não ajudará nem na luta em comum contra todas as opressões, tampouco na luta coletiva para o fim exclusivo da sua opressão identitária.

É exatamente essa quimera que buscamos adversar com o reconhecimento das dez NCOs existentes na sociedade, que precisam ser combatidas em seu conjunto. Tomamos essa atitude simplesmente porque não podemos aqui dizer qual é a pior, mais cruel, pois seria um desrespeito com a luta de afinidade do outro. Não existe hierarquia de opressão ou grau de opressão. Existe opressão, e só o oprimido sabe o quanto dói sofrer em função de algumas características que possua ou de posses que não tenha. Quem se atreve a desmerecer a tirania padecida pelo outro, apontando exclusivamente a sua como importante, simplesmente contribui para uma nova opressão. Em outras palavras, aquele que deseja, apenas, o fim da governança que lhe ataca, mostra seu grau de egoísmo, individualismo, ligado a uma compreensão conservadora de sociedade, que obsta reflexões mais amplas para uma transformação social revolucionária ampla e irrestrita que atenda aos interesses de liberdade e igualdade para todes. Neste sentido, para a superação de todas as NCOs é premente reconhecê-las. Depois, é necessário lutar pelo fim de todas elas em seu conjunto. Os primeiros passos são reconhecer que vivemos em sociedades permeadas pelo racismo que a atravessa do início ao fim e que a luta antirracista é uma luta de todos que querem liberdade, igualdade, respeito e alteridade, pois a negação desses princípios constitui bases xenofóbicas, ufanistas, nacionalistas e racistas das demais opressões. Essa luta antirracista deve ser ampla e englobar outras como: antipatriarcal, antissexista, anticapitalista, antiestatal etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

À guisa de conclusão, é chegada a hora de se buscar vencer todas as opressões. Só assim, conseguiremos a verdadeira emancipação social. Está mais do que provado que a luta coletiva é mais forte do que a individual. O que podemos propor é a unidade de todas as lutas, contra todas as NCOs e suas instituições, como única forma de vitória.

            Existem diferentes e múltiplas formas de NCOs que não foram detectadas aqui. Sem embargo, as descritas, possuem em comum, o fato de serem disseminadas pelo Estado, mas também irradiadas pela família, pela escola, pela universidades, pelos círculos de amigos, pelo local de trabalho, pelas igrejas, pelos meios de comunicação, pelos meios militares e cada vez ganham mais força nos grupos que são formados nas redes sociais.

         Por outro lado, embora esses espaços sejam a materialização do racismo institucional e das demais NCOs, a resistência a elas pode vir das mesmas instituições que geram as discriminações. Simultaneamente, as governanças sociais em seu conjunto, ou simplesmente, Necrofilias Colonialistas Outrocidas, estão em todos os lugares, mas, o que nos conforta, é que a luta pela libertação, também.

Do ponto de vista simbólico, uma perspectiva libertária e decolonial deve trabalhar para emancipar a mulher negra/indígena, lésbica, trans, analfabeta, revolucionária, deficiente, não seguidora das religiões judaico-cristã, não cidadã, trabalhadora, pobre e estrangeira, enfim, de todas as NCOs. Ao trabalhar para emancipá-la, estaremos colaborando para a libertação de todas as outras opressões em seu conjunto. Essa será a luta pela verdadeira emancipação social. Por fim, essa luta deve passar pela destruição do Estado. É aqui que a filosofia anarquista pode contribuir e muito para a luta antirracista, tendo em vista que a crítica ao Estado constitui como seu princípio central.

Nesse sentido, acreditamos que categorias amplamente defendidas pelos anarquistas podem ajudar no processo decolonial como: horizontalidade, federalismo, autodeterminação dos povos, ajuda mútua, ação direta, revolução social, dentre outros. A utilização desses conceitos deve deixar claro para o interlocutor que a verdadeira liberdade só é possível na autogestão em todos os sentidos da vida: econômica, política, sociocultural e com o abolicionismo penal.

Por fim, as filosofias anarquista e decolonial não podem deixar de levar em conta as múltiplas formas de NCOs. Assim, qualquer luta emancipatória só será completa com a supressão delas, ou, nos termos de Kropotkin (2005), com a liquidação “da ordem”[10].

Nesse sentido, cabe excelente reflexão que expressa bem esse sentimento, difundida pelo EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) quando os governantes especulavam sobre a identidade do subcomandante Marcos.

Marcos é gay em São Francisco, negro na África do Sul, asiático na Europa, hispânico em San Isidro, anarquista na Espanha, palestino em Israel, indígena nas ruas de San Cristóbal, roqueiro na cidade universitária, judeu na Alemanha, feminista nos partidos políticos, comunista no pós-guerra fria, pacifista na Bósnia, artista sem galeria e sem portfólio, dona de casa num sábado à tarde, jornalista nas páginas anteriores do jornal, mulher no metropolitano depois das 22h, camponês sem-terra, editor marginal, operário sem trabalho, médico sem consultório, escritor sem livros e sem leitores e, sobretudo, zapatista no Sudoeste do México. Enfim, Marcos é um ser humano qualquer neste mundo. Marcos é todas as minorias intoleradas, oprimidas, resistindo, exploradas, dizendo ¡Ya basta! Todas as minorias na hora de falar e maiorias na hora de se calar e aguentar. Todos os intolerados buscando uma palavra, sua palavra. Tudo que incomoda o poder e as boas consciências, este é Marcos.[11]

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

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[1] Sobre as governanças institucionais, ver De Moraes (2018).

[2] Em outra pesquisa (De Moraes, 2018), a partir da perspectiva de análise libertária, havíamos identificado nove opressões sociais. Identificamos uma nova opressão e atualizamos aquela pesquisa com a inclusão da perspectiva decolonial.

[3] Este subtópico foi escrito com apoio de Cello Latini, especialista em literatura e pesquisas sobre o assunto, a quem agradeço enormemente desde já. Para quem se interessa sobre o tema da cisnormatividade e transgeneridade, recomendo a leitura de seu artigo “PELA EMANCIPAÇÃO DOS CORPOS TRANS: TRANSGENERIDADE E ANARQUISMO”, publicado na Revista de Estudos Libertários, n. 5. Vol. 2 publicada em 2020. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/estudoslibertarios/issue/view/1537/showToc

[4] O termo “cis” é uma abreviação do termo “cisgênero/a”, usado para se referir à pessoa cuja identidade de gênero coincide com o gênero que lhe foi designado ao nascimento. Portanto, cis é o contrário de trans. A partir de agora, quando não falarmos o contrário, significa que estamos nos referindo a homem ou mulher cis.

 

[5] Essa opressão é muito bem desenvolvida por Suane Soares (2017).

[6] Estes dados estão no relatório da Transgender Europe, de 2008 e 2014. Ver: http://tgeu.org/tmm-idahot-update-2015.

[7] Capacitismo é o conceito que visa chamar a atenção para a opressão sobre os deficientes existentes na sociedade. Procuramos incluí-la em um escopo maior apresentado acima.

[9] Esse homem negro é um verdadeiro herói por conseguir espaço nessa sociedade racista. Vários deles conseguiram esse espaço. O maior exemplo disso foi o ex-presidente dos EUA Barack Obama.

[10] A ideia de “ordem” é amplamente desenvolvida e criticada por Kropotkin (2005) no capítulo 10 do livro Palavras de um revoltado, que inclusive apresenta uma justificativa para utilização do termo anarquia.

[11] Ceceña (2001).

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