“LEGADOS DA PRÉ-MODERNIDADE: AUTORITARISMO, NEGAÇÃO DO AUTOGOVERNO POPULAR”

“LEGADOS DA PRÉ-MODERNIDADE: AUTORITARISMO, NEGAÇÃO DO AUTOGOVERNO POPULAR”

Aula dia 26 de agosto de 2020[1]

Autor: Wallace de Moraes (IFCS/UFRJ)

Edição/transcrição: Cello Latini

Citarei rapidamente como a modernidade criou seu histórico, como a Europa se justificou enquanto potência, como centro mundial. Primeiramente, ela estabelece o mapa e se coloca no centro. Do ponto de vista filosófico e epistemológico, a Europa justifica sua supremacia afirmando que a filosofia nasceu na Grécia, com Aristóteles, Sócrates etc. Do ponto de vista de historiadores modernos, ocidentalizados, a história começou com Heródoto e Tucídides. Estabelece-se um ponto de herança. Ignora-se o pensamento egípcio, asiático, chinês, americano, africano…  Está é uma forma de colonização, de colonialidade do poder e do saber.

[passagem de Aristóteles: “Há homens naturalmente escravos, nascidos para serem servos, assim como há povos cuja natureza é saber melhor obedecer do que governar” (Gonzalez, 1981; Losurdo, 2015)]

Percebam na passagem de Aristóteles: há povos que nasceram para ser governados, há povos cuja natureza é saber obedecer. Aí há um racismo explícito. Por isso, essa é a base do pensamento filosófico moderno eurocentrado. Quais povos nasceram para ser governados? Para ser servos? Tanto Aristóteles quanto Platão são teóricos antidemocráticos. Trabalho, aqui, democracia como governo do povo – que não existe em lugar algum. A democracia somente pode se concretizar quando o povo se autogoverna, e se autogoverna com liberdade, igualdade. Sem isso, o povo não determina nenhuma lei criada.

Em nossa sociedade, as leis são realizadas, em sua ampla maioria, em favor dos próprios governantes e dos interesses que esses governantes defendem no governo, no parlamento, em todo lugar. Então, democracia não existe, o povo não governa. Os citados autores, ao falarem de democracia, se referiam à possibilidade de o povo governar, e eram contrários a isso. Por isso, defendiam o princípio da aristocracia, ou seja, o governo dos sábios, dos melhores, dos bons, dos educados, em seus termos. O conceito de aristocracia está ligado com outra categoria: representação. Parte-se do princípio de que o povo não pode se autogovernar, pois é incapaz, não tem mérito, não tem saber, porque nasceu para ser servo, porque nasceu para ser escravo, porque nasceu para ser governado. A modernidade abraça esse princípio com toda força e o traz aos dias atuais. Mas, além disso, a modernidade vai tergiversar, isto é, vai negar a democracia, estabelecerá o princípio da representação – que é historicamente antidemocrático – e chamará de democracia aquilo que é a negação da democracia, por antífrase. Essa é a artimanha moderna.

Há quem abrace e reproduza esses conceitos, essa exclusão social. Por isso me encanta a filosofia anarquista. A filosofia anarquista parte do princípio de que o povo pode se autogovernar, porque não existe povo incapaz, porque todo povo tem capacidade, saber e possibilidade, mas não só: todo povo deve se governar. É a ideia do autogoverno, da autogestão, da ação direta, sem necessitar de representação. Assim, o anarquismo pode contribuir muito para a luta antirracista.

[Aliás, outro historicídio é o dia primeiro de maio, o dia do trabalho, em função do enforcamento dos anarquistas que lutavam pela jornada de 8 horas de trabalho em Chicago nos Estados Unidos, no Século XIX].

O legado que o pensamento antigo deixa para o pensamento moderno é a negação da democracia, nos termos aqui colocados. Além dessa filosofia antiga, devemos pensar naquilo que foi construído nesse interregno entre a filosofia antiga e a época moderna. Citarei alguns princípios como legados para o pensamento moderno. Primeiro, os grandes teóricos europeus – e nos referimos somente a eurocentrados, pois dentro da filosofia não temos negros e indígenas considerados pensadores. A história oral, grande prática dos pensamentos indígenas, africanos e orientais – e do pensamento europeu subalternizado –, é ignorada.

Cito, então, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. A Idade Média deixa como legado os princípios: igrejista, militarista, hierárquico, autoritário, patriarcal e punitivista. É sobre esses princípios que se estabelece a modernidade. Menciono princípios igrejistas, pois a igreja católica, concretizada pelo Império Romano para ampliar seu próprio poder sobre as massas populares, justifica toda uma estrutura de sociedade hierárquica, uma adoração à autoridade, seja extraterrena, seja representante dessa autoridade metafísica. Indico o livro de Bakunin “Deus e o Estado”. Esses princípios de adoração de um Deus e de adoração, subordinação e temor aos representantes desse Deus na Terra caminharam ao lado de princípios militaristas. As Cruzadas foram expedições militares sob o princípio religioso. Os dois conceitos estão casados. Se temos igrejismo e militarismo, temos estruturas hierárquicas, autoritárias e patriarcais. Por isso, as mulheres, acusadas de bruxaria, foram queimadas vivas na Europa, já na passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Estabelece-se nestes termos a autoridade e a punição como princípios reguladores da sociedade pelos governantes.

É nítido que todos esses princípios – militarismo e igrejismo, disciplina e obediência, punição e hierarquia, violência, autoridade e desigualdade – imputam, justificam a ideia de desigualdade e da negação do autogoverno e, com a conquista das Américas, o racismo atravessará tudo isso. Daí, a importante da teoria decolonial.

Referências

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2001.

BAKUNIN, M. (2006) Textos anarquistas; seleção e notas de Daniel Guérin. Porto Alegre: L&PM, pp: 108-131; 154-157.

LOSURDO, Domenico. Contra-História do liberalismo. Aparecida: Ideias & Letras, 2015.


[1]Edição/transcrição de Cello Latini do vídeo/aula de Wallace de Moraes no canal do CPDEL do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=E_YXr9fwWyw

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