“RACISMO EPISTÊMICO, COLONIALIDADE DO SABER, EPISTEMICÍDIO E HISTORICÍDIO”

“RACISMO EPISTÊMICO, COLONIALIDADE DO SABER, EPISTEMICÍDIO E HISTORICÍDIO”

Aula dia 20 de agosto de 2020[1]

Autor: Wallace de Moraes (IFCS/UFRJ)

Edição/transcrição: Cello Latini

Bom, então o primeiro ponto que eu acho que a gente tem que discutir é: qual o significado de racismo? Esse é um ponto fundamental para entendermos qualquer coisa que passa hoje pelo Brasil e pelo mundo. Pelas relações capitalistas, pelas relações culturais, pelas relações políticas, pelas relações econômicas, pelas relações religiosas, de gênero. Esse é o ponto. Raça passa por tudo isso. Antes de a gente apresentar uma discussão epistemológica, uma discussão filosófica, uma discussão sobre política, economia e cultura, eu acho que é muito legal e interessante que a gente possa compreender qual é o significado de racismo. E aí é muito simples. Imaginemos aqui uma jovem negra, muito inteligente, muito esforçada, que quer muito trabalhar, muito perspicaz. Uma jovem negra que tem muito vontade, que precisa, nessa sociedade capitalista, de dinheiro para sobreviver; e aí ela prepara um currículo e vai levar num Shopping Center. Ao levar esse currículo, ela deixa em uma determinada loja. Vamos imaginar assim. O que vai acontecer com essa jovem negra inteligentíssima, dedicada, enfim, que quer trabalhar? Na maior parte das lojas, irão receber o currículo dela e vão guardar. Se for uma jovem branca, loira, com olhos verdes, para o mesmo cargo, e essa jovem loira, não tanto inteligente, não tanto esforçada, não tanto dedicada… Qual das duas conseguirá o emprego? Esse é o ponto.

É possível até que esta branca ocupe o emprego e que a negra seja chamada não para venda, mas sim para trabalhar no estoque, ou para trabalhar lavando banheiros. Soou, em alguma medida, familiar para você? Alias, deixa eu fazer uma pergunta: qual a possibilidade, qual a probabilidade, melhor dizendo, de um negro ser parado numa blitz policial e qual a probabilidade de um branco ser parado numa blitz policial? Esse é outro ponto. Se você respondeu positivamente, ou seja, se você entende que a possibilidade de um negro ser parado numa blitz policial é muito maior do que a de um branco; se você também responde que a possibilidade de uma jovem branca conseguir emprego é maior do que de uma jovem negra – e aí o emprego, não estamos aqui falando de um subemprego, ou de um emprego para lavar banheiro; estamos falando de um emprego razoável, vamos chamar assim –, a possibilidade de uma jovem branca é muito maior. Se você concorda com isso, então a gente vive numa sociedade racista. E eu quero convidá-lo, convidá-la, convidá-les para uma reflexão sobre esse processo. Isso tem um histórico.Se a gente imaginar que jovens negros são muito mais assassinados pelo Estado do que jovens brancos, se jovens negros têm a possibilidade de ascensão social menor do que jovens brancos, então você há de convir comigo que existe muito racismo nessa sociedade. O racismo impera aqui. Eu, por exemplo, estou, enquanto professor negro, só pra citar um exemplo que não é bobo, só um exemplo: na semana passada eu fui refazer os meus óculos, fiz um exame e tudo mais, e na ótica o vendedor me perguntou “Você trabalha com o quê?”, e aí eu respondi a ele “Eu sou professor”, e ele “Professor? Como assim você é professor?”.

“Eu sou professor.”

“Ah, professor de qual escola?”

Eu falei “Não, sou professor de Universidade.”

Ele – “Poxa, eu jamais imaginaria que você fosse professor universitário.”

Isso é racismo. Porque eu posso enquanto negro ser tudo menos professor universitário, menos discutir o saber. Isso tem um histórico. E é aqui que acho que a Filosofia, a História, a Ciência Política, a Sociologia, a Psicologia, as Ciências Humanas de modo geral têm que parar para pensar: Quando surgiu isso? Qual é o aporte disso? Eu quero tratar aqui, hoje, com vocês sobre esse processo. Para tanto, discutiremos por meio de uma perspectiva decolonial e libertária, alguns conceitos ligados a ideia de colonialidade do saber que está atrelada a outros três conceitos que se retroalimentam. Um é o de racismo epistêmico, o outro é de historicídio e o terceiro é de epistemicídio. Vamos discuti-los.

DO CONCEITO DE EPISTEMICÍDIO

Bom, vamos começar aqui pela discussão do epistemicídio. Esse conceito foi criado por Boaventura de Souza Santos. A ideia principal de epistemicídio significa a negação de conhecimentos produzidos fora da academia. Então, todo conhecimento produzido fora dos institutos acadêmicos, fora das grandes universidades, é prontamente rejeitado pelos doutores, brancos, ocidentalizados e racistas que tanto habitam as nossas universidades, seja no Brasil, na América Latina, no mundo inteiro. Todo esse conhecimento produzido fora e, sobretudo, de origem popular, é rejeitado prontamente. “Não, não tem preocupação científica” – as argumentações são das mais diversas – “não tem lastro metodológico, não tem filosofia por trás”, “não é neutro”. Isso é racismo. Isso é racismo epistêmico. Isso é colonialidade do saber. Isso é epistemicídio. É a negação da produção popular. E se essa produção popular vier de uma base negra e indígena, para além disso, se vier de uma base negra e indígena revolucionária, isto é, anti-moderna, anti-colonialista, anti-capitalista, anti-racista sobretudo, ela vai ser prontamente negada, rejeitada na universidade. Isso é epistemicídio. Epistemicídio nos seguintes termos: nos termos de produção epistemológica, obviamente, que o nome deriva daí, produção teórica, produção filosófica, produção que pense o mundo, que produza um conhecimento próprio desse mundo.

Esse produto de negros e indígenas é prontamente rejeitado. Então é isso que mais ou menos Boaventura chamou de epistemicídio e eu gosto muito desse conceito, Boaventura está de parabéns. Eu tentei ampliar esse conceito nos meus últimos livros e coloquei a questão, mas não somente sobre essa produção teórica externa à universidade que é rejeitada, e é nesse sentido que eu busco incluir essa questão dos negros e indígenas. Ademais, toda produção teórica produzida também dentro da academia, por pouquíssimos professores, pouquíssimos pesquisadores, que rejeitem ou que critiquem todo o arcabouço moderno capitalista patriarcal, racista, também é rejeitada. Esse é outro ponto que a gente tem que destacar. Mas se você consegue estar na academia e busca produzir no sentido anti-moderno, anticapitalista, anti-estadolátrico, também é prontamente rejeitado. Isso aconteceu violentamente contra toda a produção anarquista, libertária, por exemplo.

DO CONCEITO DE HISTORICÍDIO

            Bom, dito isso, acho que a gente pode avançar. Esse é um dos conceitos que eu queria tratar com vocês, o de epistemicídio, e eu estou aqui propondo um segundo conceito, que é o conceito de historicídio. Tem a mesma matriz que o conceito de epistemicídio. Epistemicídio significa a junção da palavra episteme com homicídio, então é o assassinato do conhecimento criado fora da universidade. Quando proponho aqui o conceito de historicídio, também estou tentando juntar as ideias de História e homicídio, ou seja, o assassínio de determinados fatos históricos que são retirados dos nossos livros didáticos nas nossas escolas, mas também são retirados dos currículos acadêmicos universitários no Brasil, na América Latina e em todo mundo ocidental. O que isso significa? Significa, por exemplo, toda uma ocultação da história de indígenas e de negros. Por isso, historicídio é atravessado do início ao fim pelo racismo. Sim, pelo racismo.

            Bom, o que significa isso? Por exemplo, eu aprendi na minha escola que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil. Isso é historicídio. Por quê? Porque nega toda a história produzida, toda a história de indígenas que aqui habitavam antes dos europeus chegarem. O historicídio, portanto, é uma concepção totalmente eurocentrada. Por quê? Porque as Américas só passaram a ter história a partir da chegada dos europeus. Isto é, a história começa para todos nós que habitamos a região que se convencionou chamar de Brasil quando Pedro Álvares Cabral chegou aqui. A história começa para os Latino-Americanos quando Cristovão Colombo chegou nas Américas. Isso é historicídio. É a negação da história dos indígenas que aqui habitavam anteriormente, e é também a negação da história de africanos que habitam e que habitavam em África. Isso é outra questão que temos que pensar, temos que refletir e questionar, e combater esse tipo de questão que é o historicídio. Mas tem algo a mais aí.

            Então, qual o significado, portanto, de historicídio? O historicídio, para além de esconder, negar, negligenciar, não tratar das histórias de negros e indígenas, de populares, revolucionários de modo geral, o tema do historicídio nega, não aborda as lutas populares. Não aborda nenhuma luta popular revolucionária. Não aborda os quilombos. Não aborda as resistências indígenas e negras nesse país contra o colonialismo, contra o capitalismo e, por existência e resistência, o historicídio não aborda esses aspectos da história dos nossos povos, aspectos anti-sistêmico, anti-colonialista, anti-moderna, contra a colonialidade do poder. Então, o historicídio cumpre essa função de não deixar saber, de não chegar aos populares, que outros populares ao longo da história resistiram, lutaram, praticaram muita Ação Direta, praticaram muita horizontalidade, praticaram e defenderam revoluções. Esse é o significado de historicídio.

DO CONCEITO DE RACISMO EPISTÊMICO

Quero tratar agora com vocês também de outro conceito que é o de racismo epistêmico. Bom, se a gente entende que o epistemicídio significou a negação das epistemes, das epistemologias, das teorias, das reflexões filosóficas, políticas, econômicas, sociais, de negros, indígenas e revolucionários, anticapitalistas, anti-modernos, anti-estatais, se o epistemicídio significou uma negação daquilo que vinha de fora da academia, ou seja, a academia acabou criando uma bolha, uma grande bolha branca, capitalista, racista, sobretudo, patriarcal, com o patriarcado branco – é bom dizer isso, que não é um patriarcado qualquer, porque o negro nunca ocupou o papel de patriarcado, mas em outro vídeo/aula a gente pode discutir isso –, então, essa bolha branca que é a garantia do saber que sustenta todo o regime, sustenta toda essa colonialidade do poder que a gente tanto vive, que tem as bases suas racistas;esse racismo epistêmico impede com toda força que autores negros e negras e indígenas ocupem os nossos currículos universitários, ocupem os currículos das escolas do ensino médio, do ensino fundamental. Isso é racismo epistêmico: quando apenas, ou em grande medida, apenas autores brancos defensores do sistema ocupem os currículos das nossas universidades. Maior parte de autores brancos, cada vez mais com autoras brancas, mas ainda em menor medida que autores bancos. Isso reflete um pouco a nossa universidade branca que tem em grande maioria professores homens brancos, mas também com grande número de mulheres brancas, e poucos são, pouquíssimos são os homens negros, e, em menor medida ainda, mulheres negras. Por isso, nosso currículo é eurocentrado, ocidentalizado, capitalista, moderno, e racista, sobretudo.

Como quebrar isso? Estou, aqui, caminhando nesse processo em nosso curso. Esse curso que é decolonial e libertário, justamente para incluir autoras e autores negros e indígenas que a gente possa discutir e debater esses autores. Mas tem um aspecto que acho fundamental tratar com vocês: o racismo epistêmico é mais amplo do que a gente imagina, não está apenas na ideia curricular universitária, mas também na ideia de dar voz. Um negro ou uma negra, um indígena, uma indígena que justifique o poder, que apóie um sistema que não seja anti-moderno, que não seja anticapitalista, que não seja anti-estadolátrico, mas pelo contrário, que justifique todas essas instituições que nos escravizaram, que escravizaram nossos antepassados, que escravizaram nossos ancestrais, esse autores negros podem até aparecer. Às vezes, ocupam cargos nos governos, seja no governo aqui do Brasil, seja no governo dos Estados Unidos, governo em outros lugares, mas, por quê? Porque dar cargo a eles, na verdade, significa uma “certa democratização racial” –a gente sabe que isso é uma farsa, mas se tenta passar essa ideia. Justamente pegam aquela pessoa a dedo, aquela que justamente não vai de encontro a toda a modernidade, a toda a colonialidade. Por outro lado, com relação aos autores que criticam com toda força o sistema, eles são prontamente rejeitados, imediatamente rejeitados.

A forma de justificar a exclusão de negros e indígenas cientes da sua História, críticos da perspectiva moderna colonialista e, portanto, revolucionários, é taxá-los como pessoas – não são nem considerados teóricos – que atentam contra a neutralidade axiológica tão necessária estipulada por esse pensamento branco, quando na verdade se coloca uma ideia de possibilidade de parcialidade. Então, você atenta contra o outro negando-lhe a própria palavra, a reflexão, porque ele não é neutro. Isso é uma grande farsa. E também tem a ideia do universalismo, que os europeus tentaram colocar. Por isso que eles habitam todos os nossos currículos nas ciências sociais, na filosofia, em grande medida na História e em outros cursos também. Trata-se da negação e da rejeição de negros e indígenas dos nossos currículos, pautada num racismo epistêmico. Esse não é um conceito meu, é um conceito que vi com Ramón Grosfoguel, os autores decoloniais têm utilizado muito esse conceito, e a gente vai aqui também desenvolvendo, claro que os termos que acabei de colocar para vocês, não é exatamente os deles, mas algo muito parecido.

DO CONCEITO DE COLONIALIDADE DO SABER

Quero discutir com vocês a ideia de colonialidade do saber. Já expliquei o que é o colonialismo. Vou apresentar outro vídeo/aula discutindo esse tema com mais profundidade, mas aqui, por exemplo, quando falamos de colonialidade do saber, isso está ligado à ideia de colonialismo, de colonialidade do poder, que significa uma introjeção: é assumir o discurso, a fala, o estudo, a pesquisa, do colonizador. Aquele que é colonizado pelo saber é um reprodutor de toda uma episteme construída pelos brancos, europeus, racistas, sobretudo. Então, ser decolonial é lutar contra essa colonialidade do saber. Assumir uma perspectiva decolonial tem que, necessariamente, buscar pela democratização do currículo universitário. Temos que fazer essa crítica, senão não é decolonial, não adianta, senão está virando modinha. Aliás, decolonialidade está virando muito modinha para muito autor que quer estar na crista da onda, autor branco, que não critica nem um milímetro da modernidade, que não critica nem um milímetro da colonialidade do poder, que não critica o capitalismo, que não critica o Estado, que não critica a prisão, que não critica todas essas instituições que nos escravizaram. Esse é o decolonial nutella, diferente do decolonial raiz, que é aquele que sente na pele todo o racismo que está posto em nossa sociedade.

Referências

SANTOS, Boaventura de Souza (2011). Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo [1ª ed. revista].

DE MORAES, Wallace S. Necro-racista-Estado – diálogo entre as perspectivas decolonial e libertária. Ficará disponível em breve.

_________________ UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL LIBERTÁRIA CONTRA AS NECROFILIAS COLONIALISTAS OUTROCIDAS. Ficará disponível em breve.



[1]Edição/transcrição de Cello Latini do vídeo/aula de Wallace de Moraes no canal do CPDEL do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=E_YXr9fwWyw

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